Frei Borges: “Os nossos pais tinham cuidado com a nossa formação religiosa”

Foto: Jornal da Madeira

O Frei José de Jesus Borges nasceu na Ponta do Sol, no dia 17 de abril de 1934, numa família de oito filhos, entre os quais contam-se duas religiosas, uma nas Irmãs da Apresentação de Maria (falecida em 2009), outra nas Irmãs Vitorianas. Na semana de oração pelas vocações que se inicia neste domingo, o Jornal da Madeira falou com este religioso que partilhou o seu testemunho de vida recordando a sua admissão no Seminário do Funchal com treze anos e como entrou nos franciscanos dois anos depois. Esta é a primeira parte da entrevista.

Fale-nos das suas origens e da sua família

Nasci na freguesia de Nossa Senhora da Luz, Ponta do Sol, a 17 de abril de 1934. Sou filho de Manuel de Jesus Borges e Maria da Silva Ganança. 

Como era normal noutras famílias, os nossos pais tinham cuidado com a nossa formação religiosa, e também civil. 

Quantos irmãos tem?

Tenho sete. O mais velho chamava-se Manuel, faleceu com cerca de cinco anos, muito novinho. Depois, a minha irmã Maria que ingressou na vida religiosa nas Irmãs da Apresentação de Maria, ali por 1946-47. Ela entrou primeiro do que eu. Depois sou eu o terceiro, José de Jesus Borges. A seguir, outro irmão João de Jesus Borges, que na juventude emigrou para a Venezuela e casou com uma senhora da nossa freguesia que também estava na Venezuela com os pais. Depois veio a minha irmã Maria da Luz, que hoje é religiosa, das Irmãs Vitorianas, e vive na casa do Vale Formoso, próximo da igreja de Santa Luzia.  Depois veio a minha irmã Conceição, e por volta de 1941, nasceu o meu irmão António que já faleceu e o mais novo, o Luís de Jesus Borges que era o mais novinho.

Entretanto a minha mãe faleceu em 1945, no tempo da guerra. Creio que foi por problemas de coração, de um dia para outro. O meu pai ainda a levou ao médico, mas já não saiu de lá com vida. 

Então os filhos ainda eram todos menores, quando a vossa mãe faleceu?

Pois, na altura ia fazer onze anos. O nosso irmão mais novinho Luís, faleceu, mês e meio a seguir à minha mãe. O meu pai continuou a ter connosco, os mesmos cuidados que fazia a minha mãe, quanto à formação civil e religiosa. Levavam-nos para a Igreja, cada domingo, cada dia santo de guarda. Insistiam connosco para que respeitássemos toda a gente, os nossos familiares e especialmente as pessoas mais velhas, inclusive cumprimentar: “bom dia”, “boa tarde” ou “boa noite”. Ao senhor padre procurava-se beijar a mão. Se levássemos a barreta, tirávamos a barreta, cumprimentava-se o senhor padre. Ao deitarmo-nos e ao levantarmo-nos, pedíamos: “pai, a sua bênção”, e “mãe, a sua bênção”. Igualmente ao encontrar os nossos tios, tias, avós e padrinhos e madrinhas de Batismo e de Crisma. Tratávamos as pessoas casadas por “senhor” ou “senhora”. As outras por “menina” ou “menino”. Os da nossa idade e mais novos por “tu isto”, “tu aquilo”. 

De modo que foi neste ambiente que hoje em dia eu ainda aprecio mais o que eles faziam por nós. 

“Comecei a simpatizar, com o senhor padre, nas celebrações na Igreja. Nessa altura era um padre chamado Vieira da Luz.”

Como sentiu o chamamento para a vida religiosa?

Comecei a simpatizar, com o senhor padre, nas celebrações na Igreja. Nessa altura era um padre chamado Vieira da Luz. Não tenho muitas recordações dele, mas sei onde ele morava que era próximo da Igreja, do lado da Carreira. Ainda não havia residência paroquial a seguir ao moinho, na Lombada. Entretanto, ele morreu. Agora já não me lembro bem se foi antes da minha mãe ou se foi a seguir. Isso ocasionou uma manifestação para com o acontecimento. O funeral, em vez de descer pelo moinho abaixo, veio pela Carreira e desceu pela estrada e foi dar ao cruzamento da Levada Freira, a caminho do Pico do Melro, até ao cemitério. O sino assinalava o funeral. Eu estava em casa, no balcão, em que se vê bem a estrada, tenho a ideia de ver tanta gente, tanta gente a ir no funeral. A seguir a ele, então veio o padre Luís, creio que era Luís Faria, como cura. O padre vigário era o padre João Vieira Caetano, está lá numa fotografia juntamente à de outros padres,  na sacristia da paróquia da vila. Esteve ali muitos anos, creio que para cima de trinta. 

Depois veio o padre João Gouveia de Sousa, que era do Seixal. Ele na ocasião tinha um cavalo. Digamos, os automóveis ainda não tinham chegado. Aquilo para as crianças era um chamariz. 

Na altura outras pessoas também tinham um cavalo?

Na altura, eram os militares e uma pessoa ou outra do Funchal. Porque às vezes também, especialmente durante a guerra, passavam por lá os soldados em exercício. 

O padre João Gouveia de Sousa esteve lá alguns anos, entretanto, chegou o dia da minha primeira comunhão, comunhão solene e o crisma. Foi o D. António Jesus Ribeiro ainda que me crismou. Por volta de 1948, o padre Gouveia foi para a freguesia da Boaventura e o padre Manuel Ferreira Cabral veio como cura da Ponta do Sol, e já no Funchal foi nomeado bispo auxiliar de Braga, onde foi ordenado bispo em 1962… creio, e transferido para a Diocese da Beira, Moçambique. Até que voltou para Braga, onde faleceu, não me lembro do ano. Era muito querido por todos.  

Na catequese tive uma coisa curiosa, que o padre Gouveia fazia. Ele presidia à catequese. Tínhamos a catequese, às vezes, na casa das catequistas. A minha mãe também foi catequista na nossa casa, não muito tempo. E na igreja o senhor padre, na catequese, ensinava-nos a entrar na igreja, a fazer a genuflexão ao santíssimo com um joelho. Ele por vezes chamava este ou aquele para fazer, como devia ser, a genuflexão por exemplo. E, uma vez chamou por mim, eu fui e fiz, creio que como ele ensinou. E no fim ele deu-me uma estampazinha, como dava aos outros num exercício prático, ou de resposta ou de ação. A gente apreciava muito. Era um prémio. 

Entretanto começou a surgir seminaristas na Ponta do Sol. Os primeiros que conheci: o João Macedo, o Rosário Galiza e o padre Bento que era de Santo Amaro. O primeiro foi ordenado. Era irmão do padre Francisco Macedo. Ele pertencia ao mesmo ano de D. Maurílio Gouveia e D. Teodoro Faria. O João Macedo, já com o 5º ano completo, acompanhou-me ao Seminário da Encarnação para o exame de admissão, era muito simpático para connosco. O segundo desistiu do seminário e o Bento ordenou-se.

Nas condições de admissão no seminário vinha mencionado o enxoval: fatinho preto e batina. A batina só usávamos dentro do seminário e nas ações de culto fora do seminário, na ida à Sé, por exemplo, e também nas férias, quando íamos à missa. O fato preto era para quando saíamos em passeio, habitualmente ao domingo, depois do almoço. 

“Quando disse ao meu pai que queria ir para o seminário ele ainda disse: ‘Olha que os estudos, é muito dinheiro, e eu não posso’. Eu entrei em 1947, tinha treze anos”. 

Como é que entrou no Seminário do Funchal? 

Quando disse ao meu pai que queria ir para o seminário ele ainda disse: “Olha que os estudos, é muito dinheiro, e eu não posso”. Eu entrei em 1947, tinha treze anos. 

Entretanto, não sei se foi o padre João Gouveia de Sousa, que nos conhecia e foi meu padrinho de crisma, que tivesse falado com o meu pai. Ele era cura, vivia no Pico do Melro, numa casa grande que lá havia e estava desocupada. 

Era necessário fazer o exame de admissão do seminário. Eu lembro-me que o seminarista João Macedo é que me acompanhou com o conhecimento do padre João Gouveia de Sousa. Ele de vez em quando ia ao Funchal. Comecei a identificar-me mais. 

Qual era o seminário?

Nossa Senhora da Encarnação. Aquela casa, para nós, era um palácio. Nesse primeiro ano entrou um grupo de 36 seminaristas, da Ponta do Sol, eramos três. Já havia dois, o Rosário e o Bento e depois nós: eu, o cónego Rebola e o padre Manuel Aguiar, que depois de mim, saiu do seminário e foi para os Vicentinos, em Felgueiras, lá no Norte, faleceu há volta de uns 10 anos. 

Como se sentia no seminário?

Durante dois anos, para mim, foi uma grande satisfação. Eu estava decidido a continuar. No segundo ano reprovei. O reitor cónego Barreto, dizia que alguns que tivessem reprovados em duas disciplinas, podiam repetir no início de outubro. Se passasse seguia para o ano seguinte, se não, repetia o ano. 

E o que aconteceu? 

Em 1949, durante as férias, o padre Francisco Macedo, irmão do seminarista João Macedo, que tinha completado os estudos e sido ordenado no final de junho desse ano, tinha vindo celebrar a primeira Missa à Ponta do Sol a 15 de agosto de 1949.

Ele tinha ido para os Franciscanos, por volta de 1936-37, por intermédio da avó dele. A avó era da Ordem Terceira Franciscana Secular e encaminhou-o para os franciscanos.  Ele foi para o primeiro ano estudar, na altura, já era em Braga, Montariol. Naquele tempo, havia pouco dinheiro em muitas famílias, as viagens eram caras. Ele nunca veio a férias, até se ordenar e vir celebrar a Missa Nova à freguesia da Ponta do Sol. 

Isso provocou novo entusiamo nos seminaristas da ocasião. E entraram mais alguns, depois disso. Entre eles, o padre Adelino, que era primo do padre João e do padre Francisco, o padre Bernardino Andrade, o padre Abraão e o padre José Silvestre dos Ramos Silva, ordenado em 2006, último franciscano da Ponta do Sol. Há outros das paróquias de Cristo Rei e dos Canhas, que entraram nos dehonianos, capuchinhos, etc.

Como foi parar aos Franciscanos?

Alguém, que eu não sei quem foi, falou com o padre Macedo e perguntou se ele queria levar alguém com ele. O padre Macedo disse que sim, que encaminhava, uma vez que ele no fim das férias, voltava a Lisboa, ao seminário da Luz. Para mim era uma vantagem. Ia acompanhado.

 

“Disse-lhe que gostava de ir com o padre Francisco para os franciscanos. Ele ficou admirado”

Decidiu então sair do Seminário do Funchal…

Era mais um assunto que tinha de falar com o meu pai. Ele sabia que tinha ficado mal nos estudos, mas a minha vontade era continuar, mesmo que fosse com a repetição do ano. Disse-lhe que gostava de ir com o padre Francisco para os franciscanos. Ele ficou admirado. Não respondeu logo, mas falou das dificuldades em pagar a mensalidade, os livros e disse: “como eu não poderei continuar a pagar as despesas, eu pensei; como sabes, têm havido vários rapazes e homens, que estão a ir para a Venezuela, e que eles lá arranjam facilmente trabalho e arranjam a sua vida” – e a gente notava que no regresso eles vinham, enfim, economicamente capazes de fazer uma casa, ou comprar um terreno, ou um negociozinho –  se quiseres eu falo a alguém da família de emigrantes que estejam na Venezuela, eles arranjam um emprego e mandam a “carta de chamada”. Eu disse: “Ó pai, deixe-me ir para o seminário com o padre Francisco”. Eu reconhecia que para o meu pai era difícil continuar com as despesas. Ele, comovido, com as lágrimas nos olhos, disse: “está bem, vai”. 

Foi então para o Seminário da Luz para a formação?

Não, para mim o Seminário da Luz era um ponto de passagem, a caminho de Braga, para o colégio, do 1º ao 5º ano. Depois iam para o noviciado em Varatojo, Torres Vedras. Um ano depois faz-se a profissão simples, depois a formação continua. Após três anos vem a decisão final, com a profissão solene na Ordem Franciscana. 

Antes de ir para a formação na Ordem Franciscana já tinha alguma ligação com os franciscanos?

Como seminarista, tínhamos o reitor que era o cónego Barreto, o diretor espiritual, era o cónego Pombo. Nós frequentemente eramos ouvidos por ele, um a um. Era a direção espiritual. Marcou-me muito pela maneira de ser. Os sermões grandes, na Sé ou na Igreja do Colégio, extensos, que às vezes vinha o sono. Mas não perdia o gosto por ele. 

Comecei a ter conhecimento, pouco a pouco das pregações quaresmais na Sé. Os seminaristas iam também. Algumas vezes convidavam sacerdotes do Continente. Tenho ideia de um padre franciscano, Mário Branco ou Correia Pinto, em 1948 e um padre jesuíta Castelo Branco, em 1949, um pregador muito apreciado.

Quando Nossa Senhora de Fátima veio a primeira vez à Madeira, em 1948, ali por princípio de abril – está uma recordação na igreja da Ribeira Brava, um azulejo na parede principal, exterior, uma fotografia feita durante a peregrinação pelas freguesias da Madeira. Nessa ocasião, na missa campal de início da peregrinação pela Madeira foi celebrada no cimo do lago do Infante Santo, Avenida Arrriaga, onde está a rotunda e no meio o lago. Fizeram ali um soalho com madeira e armaram um altar ali, os sacerdotes em volta e os seminaristas também. 

Nessa altura, foi convidado para a missa campal o padre franciscano, Pe. Vargas e Pires. Ainda me lembro-me das primeiras palavras que ele disse na homilia em honra de Nossa Senhora de Fátima: “Arraial, arraial, pela Virgem de Fátima, Rainha de Portugal”, assim muito destacado. Aquilo tocou-me. Nas décadas de 70 e 80 visitei-o na nossa residência em Leixões, cumprimentando-o com a expressão acima, ele achava muita graça!

Como conheceu a vida de São Francisco de Assis?

Numa homilia-conferência que o cónego Pombo costumava fazer aos seminaristas, chamadas “meditações na capela”, a seguir à oração da manhã e antes da missa. Ele falou sobre o missionário São Francisco Xavier, que era jesuíta. Aquilo ficou-me no ouvido. Veio as férias e eu lembrei-me: “vou perguntar numa livraria se há a vida de São Francisco”. Para mim, era são Francisco e supunha que era o único. Fui ao Talassa, era ali naquela rua João Tavira, pertinho da Sé, quem sobe do lado direito, havia uma casa de artigos religiosos e também tinha livros religiosos ou de santos. Fui lá e perguntei se tinham. Disseram-me que sim. Comprei um para ler. Quando cheguei a casa comecei a ler, não encontrava o nome de Xavier. Não fiquei assim tão entusiasmado como esperava. O livro era um tanto volumoso, mas creio que não tinha fotografia do santo. O texto, lia-se bem, mas era bastante arrumadinho. Era sobre São Francisco de Assis. Conservei-o durante muitos anos.

Até que surge o padre Francisco, com aquele entusiamo. Já sabia que o meu pai tinha dificuldades em continuar a pagar.

(fim da primeira parte da entrevista)