D. Nuno Brás: “Na Imaculada Conceição da Virgem Maria contemplamos o início de uma nova humanidade”

Foto: Duarte Gomes

D. Nuno Brás presidiu na manhã desta terça-feira, dia 8 de dezembro, à Eucaristia em honra da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, na Sé do Funchal.

Na homilia desta celebração, que aconteceu 700 anos depois do então bispo de Coimbra iniciar, em Portugal, o culto da Imaculada Conceição, o prelado voltou a insistir na ideia de que enquanto sociedade “vivemos mergulhados no orgulho” e de que o homem é incapaz de “aceitar seu lugar no seio de todo o criado” e vive “dominado pelo egoísmo, pela inveja e pela soberba”.

Assim sendo, frisou, “não é sem razão que, desde sempre, o homem temeu a Deus”. Ele que, em contraponto, “vive por Si mesmo”, é o omnipresente, o omnisciente, a verdade, a justiça e o amor.

Depois de traçar aquilo a que chamou “o retrato natural do homem; e o retrato do homem natural”, o prelado continuou frisando que se permanecêssemos nesta atitude, quando Deus saísse ao nosso encontro, “restar-nos-ia a sujeição (a humilhação, o medo — senão mesmo o terror — dos escravos, como no caso de tantas atitudes religiosas que encontramos ao longo da história da humanidade); a suspeição (a revolta ou mesmo a tentativa de esmagar Deus, de O derrotar, como no caso do ateísmo racionalista do século passado); ou o esquecimento (a tentativa de viver como se Deus não existisse, como sucede na vida da grande maioria dos nossos contemporâneos).”

Mas a proposta cristã, “que é a proposta do Evangelho, a proposta de Jesus — proclama uma outra possibilidade (que não é fruto das capacidades humanas, mas da iniciativa surpreendente do próprio Deus), inimaginável por qualquer mente humana, mesmo a mais brilhante”.

É a essa que se refere o Apóstolo São Paulo na Segunda Leitura, quando nos fala da “iniciativa de salvação que Deus realiza na história de cada um de nós e da inteira humanidade, ao enviar-nos o seu Filho.” E também S. Paulo, quando nos diz que “em Cristo, Deus abençoou-nos, escolheu-nos, predestinou-nos para sermos filhos. Em Cristo, fomos constituídos herdeiros”.

Neste contexto, lembrou, fomos “abençoados”, “escolhidos” e “predestinados” a sermos “filhos” e “herdeiros” já quem “em Cristo, Deus derrubou o muro infinito (cf. Ef 2,14-16) que nos separava naturalmente dele e uns dos outros — tão embrenhados estávamos no pecado, na mentira que sempre cria barreiras entre os homens e entre estes e Deus! — e, por sua iniciativa, perdoando o nosso pecado, faz-nos partilhar da sua vida eterna”.

A própria Imaculada Conceição da Virgem Maria, que hoje assinalamos, explicou D. Nuno Brás, “é a celebração de um momento essencial no desenrolar desse plano salvador que Deus tem para a humanidade pecadora”. E é ainda, sublinhou, “um enorme ato de amor que o Pai tem para com cada um de nós e para com toda a humanidade a necessitar de redenção: não poderíamos ser redimidos se Ele não assumisse a nossa natureza humana e se, ao mesmo tempo, não permanecesse verdadeiro Deus — santo, inocente, imaculado, sem qualquer contágio do pecado”.

De resto, na Imaculada Conceição da Virgem Maria, prosseguiu, “contemplamos o início de uma nova humanidade: a humanidade salva, redimida, o início de um novo modo de existir, de viver. É o modo de viver daqueles que são por Cristo, com Cristo e em Cristo — que o mesmo é dizer: daqueles que são inteiramente para o Pai, na obediência e adesão total à missão que Ele confia.”

Em pleno tempo de Advento, lembrou o bispo diocesano, “surge-nos a figura da Imaculada, cheia de graça, para nos testemunhar que Deus quer realizar em nós grandes coisas, apesar do nosso pecado: quer realizar em nós a mesma obra de salvação que em todo o seu esplendor contemplamos na pessoa da Virgem Maria”.

A Imaculada Conceição, concluiu, “convida-nos a fazer parte, como Ela, da nova humanidade. E, para isso, o Pai espera apenas que lhe correspondamos com a mesma atitude da Virgem de Nazaré: “faça-se em mim segundo a tua palavra”.

Leia na íntegra a homilia do bispo do Funchal:

IMACULADA CONCEIÇÃO

8 dezembro 2020

Catedral do Funchal

1. “Onde estás? […] Tive medo e escondi-me” (Gen 3,9.10). Quando o ser humano se aproxima de Deus, não pode deixar de o fazer com temor. Afinal, que é o homem diante de Deus?

Deus é Aquele que vive por Si mesmo; o homem é apenas uma das suas criaturas, ainda que a mais excelente. Deus é o omnipotente; o homem é um ser frágil, pobre. Deus é o Infinito; o homem é limitado, incapaz de abarcar toda a realidade. Deus é omnisciente, tudo conhece e sabe; o homem é apenas capaz de dominar uma pequena parte de quanto o rodeia, por muito que as ciências nos tenham dado a conhecer tantas coisas que ignorávamos. Deus é a Verdade, e da sua boca não pode surgir mentira; o homem é mentiroso, incapaz de aceitar o seu lugar no seio de todo o criado. Deus é Amor; o homem é dominado pelo egoísmo, pela inveja, pela soberba. Deus é o Santo; o homem é pecador. Como não temer quando Deus se mostra? Como não temer a sua justiça, que sempre traz à luz a nossa injustiça? Como não temer o seu Amor, nós que vivemos mergulhados no orgulho?

Não é sem razão que, desde sempre, o homem temeu a Deus. É mesmo uma reação natural e espontânea: “Onde estás?” — “Tive medo e escondi-me”, responde Adão. “Que fizeste?” — “A serpente enganou-me e eu comi”, responde Eva, incapaz de assumir a verdade do seu pecado. Este é o retrato natural do homem; é o retrato do homem natural. São as respostas espontâneas de quem não conhece a Deus.

Se nada mais nos fosse dado viver, e permanecêssemos nesta atitude do homem natural diante de Deus, quando Ele nos saísse ao encontro restar-nos-ia a sujeição (a humilhação, o medo — senão mesmo o terror — dos escravos, como no caso de tantas atitudes religiosas que encontramos ao longo da história da humanidade); a suspeição (a revolta ou mesmo a tentativa de esmagar Deus, de O derrotar, como no caso do ateísmo racionalista do século passado); ou o esquecimento (a tentativa de viver como se Deus não existisse, como sucede na vida da grande maioria dos nossos contemporâneos).

2. Mas a proposta cristã — que é a proposta do Evangelho, a proposta de Jesus — proclama uma outra possibilidade (que não é fruto das capacidades humanas mas da iniciativa surpreendente do próprio Deus), inimaginável por qualquer mente humana, mesmo a mais brilhante. Escutámo-la na IIª leitura, quando o Apóstolo Paulo nos falava da iniciativa de salvação que Deus realiza na história de cada um de nós e da inteira humanidade, ao enviar-nos o seu Filho.

Do mais profundo da história, em Cristo, o novo Adão, um homem pode, finalmente, responder a Deus que o procura (“Onde estás?”), não já como Adão (“tive medo e escondi-me”) mas antes: “Eis-me aqui; eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade” (Heb 10,7). E à interrogação outrora dirigida a Eva (que fizeste?”), responde agora a Virgem de Nazaré, uma mulher, Mãe da nova humanidade: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”.

Como diz S. Paulo no início da Carta aos Efésios que acabámos de escutar: em Cristo, Deus abençoou-nos, escolheu-nos, predestinou-nos para sermos filhos. Em Cristo, fomos constituídos herdeiros.

Em Cristo — o Verbo que na sua encarnação se uniu a cada ser humano, como diz o Concílio Vaticano II (GS 21) — em Cristo, somos abençoados. Quer dizer: o Pai olha para nós que, no baptismo, fomos revestidos de Cristo, e descobre o Seu Verbo. Olha para nós e diz como outrora do próprio Cristo: “Tu és o meu Filho amado” (Mc 1,11), — a nós que, naturalmente, nos procurávamos esconder do olhar divino, evitando o encontro com o Pai.

Em Cristo, somos escolhidos. O Pai olha para nós e elege-nos, convida-nos, procura-nos para participarmos na ceia das bodas do Cordeiro — a nós, que tínhamos recusado o convite para o banquete, desculpando-nos com outros afazeres mais nossos, tantas vezes inúteis (cf. Lc 14,18-20).

Em Cristo, Deus predestinou-nos para sermos filhos: filhos no Filho. O Pai não apenas tolera que, na oração, imitemos o Filho, ou que nos chamemos filhos, mas torna-nos de facto seus filhos: “e a prova de que sois filhos é que Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama Abba, Pai” (Gal 4,6; cf. 1Jo 3,1).

Em Cristo, Deus tornou-nos herdeiros — a nós que, como o Pródigo, desbaratamos a herança da criação; a nós que desbaratamos a própria herança da redenção, eis que o Pai nos acolhe, uma vez mais, como humanidade redimida, e connosco faz a festa da ressurreição (cf. Lc 15,11-32).

Em Cristo, Deus derrubou o muro infinito (cf. Ef 2,14-16) que nos separava naturalmente dele e uns dos outros — tão embrenhados estávamos no pecado, na mentira que sempre cria barreiras entre os homens e entre estes e Deus! — e, por sua iniciativa, perdoando o nosso pecado, faz-nos partilhar da sua vida eterna.

3. A solenidade que hoje aqui nos reúne — a celebração da Imaculada Conceição de Nossa Senhora — é a celebração de um momento essencial no desenrolar desse plano salvador que Deus tem para a humanidade pecadora.

Para derrubar o muro de inimizade (cf. Ef 2,14); para poder partilhar de modo salvífico a vida de cada um de nós, Deus quis fazer-se homem, assumindo em tudo a nossa natureza. Mas para nos salvar, para nos comunicar a vida divina, não Lhe era suficiente ser homem como nós: Ele devia permanecer Deus — “santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores” (Heb 7,26). Por isso, o Salvador só poderia receber a natureza humana de alguém já antecipadamente redimido, desde sempre associada pelo Pai à própria vida de Cristo — santo, inocente, imaculado — para que nenhuma sombra de pecado pudesse interferir na obra da redenção.

A Imaculada Conceição da Virgem Maria é, por isso, um enorme acto de amor que o Pai tem para com cada um de nós e para com toda a humanidade a necessitar de redenção: não poderíamos ser redimidos se Ele não assumisse a nossa natureza humana e se, ao mesmo tempo, não permanecesse verdadeiro Deus — santo, inocente, imaculado, sem qualquer contágio do pecado.

Na Imaculada Conceição contemplamos, assim, o início de uma nova humanidade: a humanidade salva, redimida, o início de um novo modo de existir, de viver. É o modo de viver daqueles que são por Cristo, com Cristo e em Cristo — que o mesmo é dizer: daqueles que são inteiramente para o Pai, na obediência e adesão total à missão que Ele confia. Ou, por outras palavras: aqueles que amam a Deus com todo o coração, com toda a inteligência, com todo o ser, e ao próximo como a si mesmo (cf. Lc 10,27).

Que os não baptizados se escondam de Deus, é compreensível. Mas que nós, cristãos, nos escondamos dele, não o conseguimos entender! Que os pagãos vivam como pagãos, é compreensível. Mas que nós, cristãos, vivamos como pagãos, ignorando a nossa condição de baptizados; que nós cristãos nos recusemos a participar da mesa do Cordeiro que é a Eucaristia; que nós cristãos deixemos de viver como filhos, de rezar e de iluminar profeticamente o mundo; que nós cristãos vivamos como pródigos, recusando o perdão do Pai e não desejemos regressar à casa paterna, será que o podemos compreender?

Em pleno tempo de Advento, eis que nos surge a figura da Imaculada, cheia de graça, para nos testemunhar que Deus quer realizar em nós grandes coisas, apesar do nosso pecado: quer realizar em nós a mesma obra de salvação que em todo o seu esplendor contemplamos na pessoa da Virgem Maria.

A Imaculada Conceição convida-nos a fazer parte, como Ela, da nova humanidade. E, para isso, o Pai espera apenas que lhe correspondamos com a mesma atitude da Virgem de Nazaré: “faça-se em mim segundo a tua palavra”.