A comunidade franciscana e numerosos fiéis reuniram-se na sexta-feira, dia 3 de outubro, no Convento de São Bernardino, em Câmara de Lobos, para a bênção da histórica Capela dos Terceiros, também conhecida como Capela de São Francisco, após uma década de trabalhos de restauro. A celebração coincidiu com várias datas simbólicas: os 800 anos do “Cântico das Criaturas”, os 10 anos da encíclica “Laudato Si’” do Papa Francisco e os 10 anos do regresso dos franciscanos ao convento de São Bernardino no chamado “dia do trânsito” de São Francisco de Assis, data em que a Igreja recorda a sua morte.
O programa começou com a celebração da Eucaristia na igreja conventual, presidida pelo cónego Marcos Gonçalves, vigário-geral da Diocese do Funchal, em representação do bispo diocesano. Na homilia, o sacerdote destacou o papel decisivo dos franciscanos na história da Madeira: “Em nome da Igreja, quero deixar um profundo agradecimento aos padres franciscanos, pois foram eles que chegaram aqui com os primeiros portugueses. Com João Gonçalves Zarco vieram os franciscanos que celebraram em Machico a primeira Eucaristia. Por isso, a verdadeira evangelização da Madeira nasce a partir do carisma de São Francisco”.
Sublinhando a atualidade da mensagem franciscana, o vigário-geral afirmou que “a nossa piedade está profundamente marcada pela maneira como os franciscanos anunciaram Jesus Cristo e o Evangelho”, desde as celebrações do Natal e da Páscoa às tradicionais missas do parto. Recordou ainda a conversão de Francisco diante da cruz de São Damião: “Francisco ficou ali, a olhar para Cristo crucificado, deixou-se contemplar, rezou e pediu ao Senhor luz e força para recomeçar a sua vida. E foi então que ouviu aquelas palavras que o marcaram profundamente: ‘Francisco, reconstrói a minha Igreja’”.


O sacerdote recordou o exemplo do santo de Assis, que “não quis reformar a Igreja com críticas, mas a partir da sua própria transformação interior” e insistiu na importância de cuidar da criação: “Devemos amar e cuidar do nosso planeta e dos animais, inclusive os domésticos, que vivem connosco e nunca devem ser maltratados. Fazem parte da família e devem ser tratados com amor e dignidade, pois são criaturas de Deus”.
Durante o momento de Ação de Graças, Frei Nélio convidou à meditação do “Cântico das Criaturas”, cuja redação celebra este ano 800 anos, tendo o ator Hugo Castro Andrade declamado o texto em formato teatral ao longo da igreja. Este cântico de louvor a Deus, “Altíssimo, omnipotente e bom Senhor”, foi composto por São Francisco em São Damião, traduzindo a sua renovada experiência espiritual após a receção dos estigmas no monte Alverne. Nele surgem os temas da fraternidade universal com todos os seres a quem trata por “irmão” e “irmã”, a paz e o perdão e, inclusive, a reconciliação com a “irmã morte”, sem esquecer o louvor pela “nossa irmã, a mãe Terra que nos sustenta e governa e produz variados frutos, flores e ervas”. Neste poema/oração reconhecemos um Francisco transfigurado ou reconciliado com todas as dimensões da sua vida pessoal, eclesial, social e cósmica.
No final da missa, Frei Nélio dirigiu palavras de agradecimento a todos e anunciou, ainda, as próximas iniciativas futuras: de 13 a 16 de outubro, todas as manhãs, decorrerão oficinas musicais com músicos convidados de Lisboa, Inglaterra e Alemanha, a 15 de novembro a Orquestra de Bandolins celebrará o seu 17.º aniversário com uma Eucaristia e concerto em São Bernardino e, no dia 21 de dezembro, realizar-se-á um concerto de Natal pelo Grupo Coral do Estreito de Câmara de Lobos.


Após a missa, no adro, procedeu-se à bênção dos animais, expressão concreta do amor às criaturas proclamado por São Francisco.
Seguiu-se a bênção da Capela dos Terceiros, espaço com mais de dois séculos de história que reabre agora ao culto e à comunidade após cerca de dez anos de intervenções faseadas. Antes da bênção, Frei Nélio explicou o significado do brasão da Ordem Franciscana no teto da capela, que considera “um dos elementos mais relevantes do Convento de São Bernardino”: “Os dois elementos mais icónicos deste convento são naturalmente os dois brasões da ordem franciscana, encontrando-se este no teto da capela de São Francisco e outro, em pedra lavrada, na antiga sacristia, ambos do século XVIII”.
O brasão representa os braços de Cristo e de São Francisco com os estigmas nas mãos, rodeados por três pares de asas que evocam a experiência mística do santo no Monte Alverne. Inclui ainda a coroa seráfica, com a meditação das sete alegrias de Nossa Senhora, o cordão franciscano e os instrumentos da Paixão de Cristo, acompanhados da inscrição paulina “Longe de mim gloriar-me a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6,14). A cruz de Jerusalém na base recorda a presença contínua dos franciscanos na Terra Santa através da Custódia da Terra Santa, instituição que, desde os tempos de São Francisco, guarda os Lugares Santos e acolhe peregrinos do mundo inteiro.
Construída no século XVIII pela Ordem Franciscana Secular (OFS), a capela era o espaço espiritual dos “terceiros”, leigos que seguiam o carisma franciscano.
Com o passar do tempo, a capela assumiu também uma vocação cultural. Durante o período em que a paróquia de Santa Cecília funcionou em São Bernardino, acolheu peças de teatro, concertos, palestras, retiros e catequese, muitas vezes dinamizados pelos jovens. “Esta capela tem vocação religiosa, mas também cultural”, recordou Frei Nélio.


O restauro, iniciado há cerca de dez anos, decorreu por etapas: começou com a colocação de um novo telhado, seguido da substituição do soalho em madeira, do restauro integral do retábulo em talha dourada com folha de ouro, e do teto com o brasão franciscano. A fase final incluiu a pintura das paredes e portas, o marmoreado das madeiras e o envernizamento do piso.
A obra só foi possível graças ao esforço conjunto da Câmara Municipal de Câmara de Lobos, das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias, da Ordem dos Frades Menores de São Bernardino, da Ordem Franciscana Secular, que ofereceu a mão de obra, e das ofertas espontâneas da população. Os bancos atualmente existentes foram doados pela Paróquia da Sé do Funchal.
A história da capela está também ligada a figuras marcantes da espiritualidade franciscana na Madeira, como a Irmã Maria de São Francisco Wilson, falecida no convento em 1916. As suas exéquias foram celebradas precisamente nesta capela antes de ser sepultada em Câmara de Lobos e, mais tarde, trasladada para a Quinta das Rosas.
Entre o património artístico, destacam-se duas peças do século XVIII: a imagem de vestir de São Francisco de Assis, proveniente do antigo convento do Funchal e colocada no nicho central do retábulo, e um crucifixo no alto do altar-mor.


O restauro da Capela dos Terceiros representa um marco na história religiosa da Madeira e um símbolo vivo de fé, cultura e memória. “Este é um espaço aberto ao exterior, à diocese, às paróquias e aos movimentos, assim como à cultura, podendo, à semelhança de outros espaços idênticos, designar-se também como Centro Cultural de São Bernardino”, sublinhou Frei Nélio, sublinhando que “a poesia e a música foram fundamentais no itinerário espiritual de Francisco de Assis”.
A cerimónia concluiu-se com um momento musical pela Orquestra de Bandolins de Câmara de Lobos e um convívio no adro do convento, numa noite que celebrou não apenas as raízes franciscanas da Madeira, mas também a sua presença como espaço de fé, comunhão e cultura.









































