Conto: Decisões difíceis

D.R.

Naquela pequena aldeia entre serra e mar, perto da capital, reinava alguma tristeza e inquietação. Na verdade, nos últimos tempos tudo estava a mudar de forma acelerada: tinham aparecido nas redondezas duas grandes superfícies comerciais, que atraíam toda a gente, e as lojas pequenas estavam a fechar, ou a ser adquiridas por estrangeiros de diferentes origens e etnias nunca dantes ali chegados. As pessoas já não se conheciam, já não se cumprimentavam nas ruas estreitas, os mais velhos estavam a desaparecer e os mais jovens eram de fora, falavam línguas estranhas, davam nomes estrangeiros às lojas e perdia- se pouco a pouco o cimento que sempre unira aquela pequena comunidade…

Há muito que alemães e ingleses de certa idade tinham comprado casas e quintas na zona e ali viviam tranquilamente, de certo modo bem integrados, gozando o sol, a praia e a serra e os restantes atractivos do país, aproveitando as suas boas reformas.
Anos mais tarde, tinham chegado russos, romenos e ucranianos, em busca de paz, pão e trabalho, tornando- se admirados e respeitados pelas suas qualidades e competências como trabalhadores na construção civil e também pelas suas capacidades linguísticas. Tinham entre eles um padre ortodoxo que os conhecia, os baptizava, casava , pacificava e guardava e a boa relação com o padre católico da paróquia local, que lhes emprestava a igreja para as suas celebrações, contribuía decisivamente para um saudável convívio entre todos.
Agora porém, eram outros os recém- chegados, com diferentes hábitos e costumes: pouco a pouco, surgiam chineses, nepaleses e paquistaneses…sorridentes, sim, mas sem conhecerem uma palavra da língua – mãe, empunhando documentos e vistos que nem sabiam ler, e a comunicação era bem mais difícil com as gentes da terra… todos procuravam os pequenos negócios, as mercearias…as frutarias…enquanto que os filhos das gentes da terra tinham ido estudar para a cidade.

Ora viviam ali naquela aldeia, o Sr. Victor e a D. Celeste, um casal de todos conhecido e muito estimado, que com os seus oitenta e muitos anos, ainda eram donos da mercearia mais antiga da aldeia, fundada pelos pais do Sr. Victor! Era a Mercearia Bandeira! Viviam numa casa térrea mesmo ao lado da mercearia, que tinha o apelido dos fundadores, a única aliás, ainda na mão de gente da terra…pois muitos dos seus amigos já tinham morrido, outros tinham cedido e trespassado as suas lojas, enquanto que eles se mantinham no seu negócio, com ajuda de dois vizinhos mais novos que eram como seus empregados nas horas vagas, e ao fim do dia, os ajudavam, indo também ao mercado abastecedor e ajudando a arrumar a loja. Durante o dia, contudo, eles sozinhos ainda davam conta do serviço. E orgulhavam- se disso, dizendo aos seus fregueses, a quem conheciam de longa data e a quem tratavam pelo nome: – ‘Enquanto Deus nos der vida e saúde, estaremos aqui de plantão e tomamos conta do nosso negócio…’ Na verdade, tinham a loja num brinco, sempre bem arrumada, limpa e bem cheirosa, vendendo um pouco de tudo, modernizando dentro do possível e procurando corresponder ao gosto de cada um.
Contudo, o peso da idade, as artroses, a dificuldade no andar, as dores na coluna e a atrapalhação com os computadores e a contabilidade, eram sinais claros de que se aproximava a hora, mais dia, menos dia, de também eles terem de trespassar, vender ou fechar portas… já há muito que a família e os amigos os tinham avisado e aconselhado… ‘olhem que a idade não perdoa!’ mas eles nem queriam pensar em tal.

Alguns meses atrás, um casal chinês de meia-idade tinha andado por ali a querer comprar- lhes a loja, depois de marido e mulher se terem revezado, sentando- se num caixote durante mais de uma semana, ali à esquina da rua, a contar o número de passantes, de carros e de fregueses, que pacientemente registavam num caderninho de bolso.
E diziam- lhes, rondando a porta: ‘- Nós quelemos complal a tua loja ! Quanto queles? Quanto dinheilo? Nós pagal bem e a plonto…’
Mas o Sr. Victor, zangado com a insistência, e por vezes toldado com um copito de vinho a mais, virava- lhes as costas, dizendo:’- A minha loja não está à venda… já disse!’
De outra vez aparecera um nepalês, que com ajuda de um tradutor, também tentara a sua sorte, pedindo até para visitar o interior da loja, mas o Sr. Victor, muito indignado, logo recusara, ao saber que ele pretendia usar a cave da sua mercearia também como casa de habitação, nem mais nem menos que para umas seis ou oito pessoas, tudo família, dizia ele …e o Sr. Victor comentara, escandalizado:’ … mas eles pensam que isto é um galinheiro, ou quê???’

Até que num certo dia de muita chuva, a D. Celeste, já trôpega, mas teimosamente recusando usar bengala, escorregou à entrada da loja, caiu e partiu a perna… o Sr. Victor, muito aflito, logo chamou uma ambulância dos bombeiros, fechou a porta e lá foram para o hospital mais próximo… contudo ali não havia urgência de ortopedia e foram reencaminhados para outro muito mais distante… à chegada havia uma fila enorme de doentes…chorava a D. Celeste deitada na maca, à espera, cheia de dores , e chorava o Sr. Victor com pena dela e ao mesmo tempo, todo preocupado, vendo as suas vidas de repente tão ensarilhadas.
-‘Ai, filha, filha, não chores… deixa lá que os médicos vão tratar de ti… descansa! ‘- dizia ele a tentar consolar a mulher, com os seus modos um tanto rudes.

-‘ Oh Victor, não hei- de chorar? Estou para aqui cheiinha de dores… vou ter de ser operada de certeza… e tu, meu homem, quem vai tratar de ti e da nossa loja??? Ai, valha- nos Deus… já devíamos ter feito como os outros… o nosso filho é que tinha razão… a gente já não tinha idade para estes trabalhos… já telefonaste ao nosso filho? Já lhe disseste?’- dizia a pobre queixosa…

Sim, o Sr. Victor já tinha avisado o filho e os dois netos mais velhos. E eles já vinham a caminho, largando os seus afazeres. O filho Domingos, engenheiro civil, (o grande orgulho de seus pais!) estava a tomar conta de uma obra importante no sul do país, (felizmente já acabara as obras no Norte de África e em Espanha!) e claro que, muito preocupado, já se pusera a caminho. Os netos, dois gémeos, um estudante de Informática e outro de Economia, com 20 anos, bons rapazes, alunos briosos e grandes amigos dos avós, logo se tinham prontificado em ajudar no que fosse necessário e pegando no carro da mãe iriam ter também ao hospital…logo que soubessem qual.

Enfim, nada foi fácil e a D. Celeste teve mesmo de ser operada ao colo do fémur. Ficou internada várias semanas, enquanto que o Sr. Victor, acabrunhado, foi levado para casa do filho. E lá desabafava as suas preocupações, frequentemente, com a nora, dona de casa que deixara o seu trabalho profissional de enfermeira, quando nascera a filha mais nova, um bebé de certo modo inesperado mas muito amado e agora já com seis anos.
‘Estou para aqui feito um inútil a dar- vos trabalho e despesa… e agora que vamos fazer à nossa vida?’ – perguntava ele, amargurado.
‘ Vou ter que vender a loja a um qualquer destes estrangeiros? Para fazerem dela o quê? A loja que o meu pai abriu com tanto sacrifício e onde a mãe e eu trabalhámos tanto, tanto, toda a vida, para darmos um curso ao nosso Domingos! Ai, que desgosto… a mãe não vai aguentar quando perceber que se acaba com a loja e agora vou ter de pô- la num lar… Claro que não vou deixá-la sozinha! Eu vou com ela… mas e dinheiro para tanta despesa? Só se vender a loja…’- e chorava o pobre velho, desolado.
Entretanto porém, Domingos, a mulher e os filhos, que eram uma família de gente boa e unida, puseram- se a matutar num plano…aproximava- se a data da saída do hospital de D. Celeste. Urgia uma solução, pelo menos provisória…
E pela boca da pequenita surgiu uma outra ideia:-‘ Já sei! A casa dos avós égrande… podíamos ir viver com eles na aldeia… a mãe e eu podemos tratar dos avós e eu quando crescer tomo conta da mercearia…’

Pais e irmãos sorriram ante a inocência da criança!
A mãe foi deitar a filha, porque já se fazia tarde e tinha escola no dia seguinte. O avô já recolhera ao quarto há muito.
Pai e filhos ficaram a conversar. Todos tinham bem presente que arrancar os avós ao seu meio natural, metê- los num lar e vender a loja era o mais fácil- o que qualquer pessoa faria! – mas seria antecipar o seu fim e impor- lhes uma enorme dor…um desgosto irreparável!

Então um dos gémeos sugeriu:

⁃ ‘Pai, eu vou desistir do Erasmus… acabarei o meu curso mais devagar, mas sei que consigo pegar no negócio dos avós!’
E logo o irmão gémeo acrescentou:
⁃ ‘E eu estava a pensar exatamente no mesmo! Posso ir às aulas à noite… vou ajudar- te e aos poucos, nós dois vamos fazer da loja dos avós uma ‘loja gourmet ‘… não deixamos cair a mercearia Bandeira! E eles ficarão felizes ao perceberem que o seu negócio continua na família!`

A mãe chegou nesse momento à sala, ouviu as últimas palavras dos filhos e sorrindo, disse ao marido:
⁃ ‘Estás a ver? Eu bem sabia que em família íamos encontrar uma boa saída…Não te preocupes, Domingos! Creio que está tudo solucionado e os teus pais gostarão da ideia… vamos trazer a tua mãe aqui para casa, na cidade, nestes primeiros tempos… e com alguma ajuda de uma cuidadora, eu consigo tratar dos teus pais… depois, quando melhorarem, se eles quiserem voltar para a sua casa, parece- me que a ideia da nossa filha também é boa… a casa é grande, tem um apartamento lá no pátio traseiro onde podemos fazer algumas obras e mudamo-nos nós para lá, ficando junto eles. Os teus pais tanto nos ajudaram no princípio das nossas vidas, que está na hora de os ajudarmos nós…’
Domingos olhou- os a todos com carinho! Naquela noite, quando se foram deitar, pai, mãe e filhos, todos sentiram que lhes saíra um enorme peso do peito… não, a vida não seria mais fácil, os dias que se avizinhavam trariam muitas dificuldades… mas uma voz interior, comum a todos, lhes dizia que as suas decisões estavam certas… e até ao fim dos seus dias, nada faltaria aos ‘ velhotes’, cujas lágrimas iriam secar…e por certo, eles voltariam a sorrir!

Fátima Fonseca