O bispo do Funchal presidiu na sexta-feira, dia 17 de maio, a uma Eucaristia na Sé com a qual se assinalou o Dia do Advogado.
Uma oportunidade para o prelado vincar, na sua homilia, que “mesmo não tendo referências religiosas, nem por isso o Direito deixa de ser um meio, através do qual se actua o plano divino de salvação. E como o Direito, tantas outras realidades humanas — todas as realidades verdadeiramente humanas. Por meio delas, quaisquer que elas sejam, Deus actua e conduz a história, converte e toca os corações”.
E, explicou ainda D. Nuno Brás, “por constituir uma realidade importante na defesa e reconhecimento da dignidade humana o Direito seria importante para Deus. Mas é a própria salvação que, misteriosamente, passa também por ele. Passa pelos muitos “Festos” que existem — e que, mesmo não tendo qualquer referência directa a Deus, na sua verticalidade e defesa do Direito não deixam de ser essenciais também para a realização do plano salvador de Deus”.
O bispo do Funchal, que refletiu ainda sobre o episódio de Paulo e Festo, reconheceu ainda o Direito como “realidade essencial” na convivência das sociedades humanas nos seus mais diferentes aspectos, “sobretudo como forma de garantir os direitos do mais fraco e, assim, que a sua dignidade como ser humano é respeitada”, apelou à assembleia que pedisse ao Senhor “para quantos exercem e lutam pelo Direito, a capacidade e a coragem de o defender e exercer livremente”.
“E a todos nós que percebemos e nos maravilhamos como Deus se mistura e tira partido das realidades humanas, a graça de dar testemunho da fé com a nossa vida, deixando que Deus nos tome como seus instrumentos para realizar o plano de salvação de toda a humanidade”, concluiu.






Lei na íntegra a homilia de D. Nuno Brás:
DIA DO ADVOGADO
Sexta-feira da VII Semana Pascal
Sé, 17 de Maio de 2024
“Respondi-lhes que não era costume dos romanos conceder a entrega de qualquer homem, antes de o réu ter na sua frente os acusadores e poder defender-se da acusação” (Act 25,16).
1. Paulo, o fariseu nascido em Tarso, na Cilícia (actual Turquia), era cidadão romano. Não sabemos a origem exacta de tal condição — se por herança paterna, por nascimento em cidade romana, ou por qualquer outro motivo que nos escapa. Mas sabemos que era cidadão romano desde o nascimento. E sabemos que essa condição lhe tinha já evitado que recebesse do Tribuno Claudio Lísias o castigo da flagelação (Act 22,25) e que tinha ainda permitido a sua condução à presença do Governador Marco Félix, evitando a conspiração judaica contra a sua vida. Fora ainda a sua condição romana que levara o Governador a adiar por dois anos o juízo definitivo do Apóstolo, e a conversar com ele com frequência (Act 24,27).
Durante o ano 60, Félix, acusado de corrupção (de que vemos indícios também em Act 24,26) e de severidade excessiva, foi substituído no governo da Judeia por Pórtico Festo, deixando no entretanto o Apóstolo Paulo nos calabouços de Cesareia (cf. Guerra Judaica VI, 5,3).
Chegado o novo Governador, o Sinédrio de Jerusalém não esquece, antes renova as acusações contra Paulo. Mas este, mesmo percebendo que poderia, com alguma facilidade, vencer a causa, requer que esta seja decidida em Roma pelo Imperador. Fá-lo porque, claramente, tinha em mente uma viagem que seria bem mais difícil empreender de outro modo: Paulo queria ir anunciar o Evangelho em Roma, segundo a missão anteriormente recebida do Senhor Jesus: “Assim como deste testemunho de Mim em Jerusalém, deverás dar testemunho também em Roma” (Act 23,11).
É durante este intervalo que Herodes Agripa visita Festo, juntamente com Berenice, sua irmã. Festo não sabe o que escrever ao Imperador acerca do estranho caso de Paulo (tudo lhe parece uma questão religiosa, para ele sem sentido), e pede ajuda a Agripa.
O texto que acabámos de escutar como Iª leitura é precisamente essa narração. Nela, Festo conta o que disse ao Sinédrio: “Respondi-lhes que não era costume dos romanos conceder a entrega de qualquer homem, antes de o réu ter na sua frente os acusadores e poder defender-se da acusação” (Act 25,16).
2. O direito romano não tem origem divina. São um conjunto de normas que regulam a vida da sociedade romana, fruto de diversas fontes, mas que, desde esse tempo até aos nossos dias constituem a base de uma boa parte do direito ocidental.
Sabemos como, no tempo do Império, o Direito era apenas aplicado aos cidadãos romanos (como era o caso de Paulo) _ escravos e estrangeiros eram tomados como inferiores. Foi o cristianismo que, depois, alargou os princípios romanos a todos e reconheceu a sua universalidade.
Não podemos, por isso, deixar de realizar duas observações importantes, tanto mais que esta nossa celebração tem lugar por ocasião do Dia do Advogado.
Em primeiro lugar, reafirmemos o Direito como realidade essencial na convivência das sociedades humanas. Com efeito, é sua função não apenas para regular a convivência humana nos seus mais diferentes aspectos como, sobretudo, garantir os direitos do mais fraco e, assim, que a sua dignidade como ser humano é respeitada.
Claro que o Direito é, depois, vertido em leis pelo poder legislativo — leis que podem ser mais ou menos justas, ou mais ou menos conformes aos princípios naturais e racionais que as devem inspirar. Por isso mesmo, a lei injusta (aquela que não é inspirada pelo Direito) não obriga. Antes deve conduzir à objecção de consciência.
Mas isso significa que não podemos passar sem o Direito e sem o seu exercício. No caso de Paulo, as autoridades de Jerusalém desejavam uma rápida condenação do Apóstolo acusado — daquele que consideravam traidor (um fariseu que, há não muito tempo, se tinha distinguido na perseguição aos cristãos, e que agora defendia a fé. Acusaram-no de “profanação do Templo”. O caso, segundo eles, já durava há muito. Era essencial uma solução breve.
Os princípios maquiavélicos teriam aconselhado uma rápida solução do caso, tendo em conta a insignificância do acusado e a importância dos acusadores e da acusação para uma convivência pacífica entre as duas autoridades em questão.
Mas Festo tem a coragem, mesmo a custo de uma pacífica convivência com os Judeus de Jerusalém, de lhes afirmar que “não era costume dos romanos conceder a entrega de qualquer homem, antes de o réu ter na sua frente os acusadores e poder defender-se da acusação” (Act 25,16).
Em segundo lugar, ao permitir a defesa de Paulo — recordemos que no Direito romano não entra qualquer princípio de origem religiosa — ao permitir a defesa de Paulo, mesmo sem compreender seja o motivo da discussão, seja o porquê do apelo que o Apóstolo faz ao Imperador — o governador Festo está efectivamente a colaborar na realização do plano divino.
Se Festo tivesse decidido pela não aplicação do Direito, Paulo não teria ido a Roma; teria perecido dias depois, fruto da conspiração judaica. Nunca teria redigido a sua Carta de apresentação aos Romanos. Não seria um dos fundamentos da Igreja em Roma. Não seria martirizado na capital do Império… o Evangelho salvador de Deus, tal como o apresenta a obra de S. Lucas, não teria encontrado a sua realização na capital do Império. A história universal seria completamente diferente.
Mesmo não tendo referências religiosas, nem por isso o Direito deixa de ser um meio, através do qual se actua o plano divino de salvação. E como o Direito, tantas outras realidades humanas — todas as realidades verdadeiramente humanas. Por meio delas, quaisquer que elas sejam, Deus actua e conduz a história, converte e toca os corações.
Já por constituir uma realidade importante na defesa e reconhecimento da dignidade humana o Direito seria importante para Deus. Mas é a própria salvação que, misteriosamente, passa também por ele. Passa pelos muitos “Festos” que existem — e que, mesmo não tendo qualquer referência directa a Deus, na sua verticalidade e defesa do Direito não deixam de ser essenciais também para a realização do plano salvador de Deus.
Peçamos ao Senhor para quantos exercem e lutam pelo Direito, a capacidade e a coragem de o defender e exercer livremente. E a todos nós que percebemos e nos maravilhamos como Deus se mistura e tira partido das realidades humanas, a graça de dar testemunho da fé com a nossa vida, deixando que Deus nos tome como seus instrumentos para realizar o plano de salvação de toda a humanidade.