Quarta Feira de Cinzas – “Deus oferece nova oportunidade, não ao pecado, mas ao pecador – D. Nuno Brás

Foto: Duarte Gomes

O bispo do Funchal voltou a desafiar os cristãos da diocese a viver uma Quaresma de conversão. Foi na homilia da celebração de Cinzas, que teve lugar esta quarta-feira na Sé do Funchal, com D. Nuno Brás a deixar bem claro que “o amor de Deus oferece sempre uma nova oportunidade, não ao pecado, mas ao pecador”.

Depois de citar Joel quando este diz “rasgai os vossos corações e não as vossas vestes”, o prelado vincou que “este convite do Profeta Joel que acabámos de escutar, não pode deixar de ser uma interpelação para todos”, porque este “rasgar as vestes era já um sinal visível de conversão, de arrependimento, de penitência”, então “quando o profeta convida a rasgar o coração, convida a ir mais além e mais profundamente: porque o coração é, para a tradição bíblica, o lugar da vida, do sentimento, das escolhas, da relação com Deus”. 

“Rasgar o coração significa, portanto, abrir diante de Deus a nossa realidade mais íntima; expô-la à Sua luz e ao seu juízo; deixar que Ele converta o nosso modo de pensar, de ser, de viver — que o faça não apenas no que somos exteriormente, naquilo que aparece e é conhecido por todos ou a alguns, naquilo que diz respeito à nossa vida social, mas que modifique igualmente aquelas realidades que constituem o núcleo mais sagrado e íntimo de cada um — a fonte daquilo que, de verdade, nos move e que inspira as nossas escolhas, que anima a nossa vida”, constatou D. Nuno Brás.

Nós que vivemos num mundo que “é tão ao contrário do que nos propõe o Evangelho”, nós que vivemos num mundo em que “o importante é ser louvado pelos demais, é aparecermos publicamente”, nós que “vivemos num mundo que facilmente elogia aquele que rasga as suas vestes, mas onde quem ousa expor o seu coração à luz divina é ridicularizado e perseguido”, temos de agir de outra forma.

De resto, este nosso mundo valoriza o “eu”, o subjectivo; o cristianismo valoriza o outro, a caridade. Neste nosso mundo somos convidados a desconfiar de tudo e de todos; o cristianismo tem na sua raiz a fé. Este nosso mundo vive para o presente; o cristianismo vive para a eternidade. Este nosso mundo exalta o poder; o cristianismo enaltece o serviço. Este nosso mundo procura a riqueza material; o cristianismo apresenta como caminho o pobre que é Jesus. Este nosso mundo coloca o homem no centro de tudo; o cristianismo coloca Deus no centro da nossa vida. Este nosso mundo celebra os heróis, aqueles que são recordados pelas obras que conseguiram realizar; o cristianismo olha para os santos, aqueles em quem Deus mostrou e tornou real o seu amor para com todos” explicou.

Mas até nisso, garantiu D. Nuno Brás, o cristianismo é diferente, porque Jesus nos garante que o amor de Deus oferece sempre uma nova oportunidade, não ao pecado, mas ao pecador. Sim, como afirma o Papa Francisco na sua mensagem, esta Quaresma mostra como “Deus não Se cansou de nós”.

E por isso, “Hoje, não iremos rasgar as nossas vestes. Mas vamos impor-nos as cinzas, como expressão da atitude interior de quem grita, uma vez mais, ao Senhor: “‘Perdoai, Senhor, perdoai ao vosso povo e não entregueis a vossa herança а ignomínia e ao escárnio das nações”, na certeza de que, uma vez mais, Ele se irá encher de zelo e ter compaixão deste seu povo que somos nós”, concluiu. 

Depois da homilia foram abençoadas e impostas as cinzas, obtidas da queima dos ramos usados no Domingo de Ramos do ano passado, em muitos dos fiéis que enchiam a Catedral do Funchal, nesta Eucaristia concelebrada pelos bispos eméritos do Funchal.

Recorde-se que a Quaresma que se iniciou precisamente neste dia 14 de fevereiro, é um tempo litúrgico, de 40 dias (a contagem exclui os domingos), que tem início com a celebração de Cinzas e é marcado por apelos ao jejum, partilha e penitência; serve de preparação para a Páscoa, a principal festa do calendário cristão.

Leia na íntegra a homilia do prelado

QUARTA-FEIRA DE CINZAS
Catedral, 14 de fevereiro de 2024
“Rasgai os vossos corações e não as vossas vestes” (Joel 2,13)

1. “Rasgai os vossos corações e não as vossas vestes”. Este convite do Profeta Joel que acabámos de escutar, não pode deixar de ser uma interpelação para todos — tanto mais que ele é, mesmo que por outras palavras, retomado no evangelho pelo próprio Jesus.

Para o povo de Israel, rasgar as vestes era um sinal de luto, de angústia, de arrependimento. Os pais faziam-no pela morte de um filho: Jacob rasgou as suas vestes quando recebeu a notícia do desaparecimento de José (Gen 37,34); e David rasgou-as ao receber a notícia do assassinato de seus filhos (2Sam 13,31).

Mas, para Israel, rasgar as vestes era, também, um modo de confessar a culpa diante de Deus, e de pedir perdão: quando o exército de Israel fugiu da batalha, tornando impossível a entrada na Terra Prometida, Josué rasgou as vestes, prostrou-se por terra e cobriu a cabeça com cinza, pedindo ao Senhor que perdoasse o pecado do povo (Jos 7,6); e o mesmo sucedeu quando a Arca da Aliança caiu nas mãos dos filisteus (1Sam 4,12).

Rasgar as vestes, expor a nudez do corpo, expressa a pobreza total daquele que, por causa do sucedido, ficou indefeso, sem razão de viver — seja pela morte de alguém querido, seja por causa do seu pecado ou do pecado de todo o seu povo. Mas, diante de Deus, rasgar as vestes expressa, igualmente, a insensatez do pecado e a disponibilidade para acolher a palavra definitiva do Senhor.

Com frequência, o gesto de rasgar as vestes era também acompanhado pelo revestir-se de saco e por colocar cinza sobre a cabeça: diante de Deus, o pecador reconhece que nada vale senão cinza. Assim fizeram os habitantes de Nínive, em sinal de penitência, depois que Jonas os advertiu do pecado: “Os homens de Nínive acreditaram em Deus, proclamaram um jejum e vestiram-se de saco, do maior ao mais pequeno” (Jon 3,5).

2. Contudo, o Profeta Joel diz: “Rasgai o vosso coração e não as vossas vestes”. Rasgar as vestes era já um sinal visível de conversão, de arrependimento, de penitência; mas era ainda algo que poderia dizer apenas respeito ao exterior do crente.

Quando o profeta convida a rasgar o coração, convida a ir mais além e mais profundamente: porque o coração é, para a tradição bíblica, o lugar da vida, do sentimento, das escolhas, da relação com Deus. É, por excelência, o lugar do mistério da pessoa humana, o lugar do seu segredo mais íntimo e mais profundo. Recordemos a afirmação do Profeta Jeremias: “O coração é o que há de mais astucioso e incompreensível; quem pode entendê-lo? Posso Eu, o Senhor, que penetro os corações e aprofundo os sentimentos de todos” (Jer 17,9).

Rasgar o coração significa, portanto, abrir diante de Deus a nossa realidade mais íntima; expô-la à Sua luz e ao seu juízo; deixar que Ele converta o nosso modo de pensar, de ser, de viver — que o faça não apenas no que somos exteriormente, naquilo que aparece e é conhecido por todos ou a alguns, naquilo que diz respeito à nossa vida social, mas que modifique igualmente aquelas realidades que constituem o núcleo mais sagrado e íntimo de cada um — a fonte daquilo que, de verdade, nos move e que inspira as nossas escolhas, que anima a nossa vida.

A isso também nos convidava Jesus no evangelho: “Quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita, para que a tua esmola fique em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa” (Mt 6,3-4).

Todos nós necessitamos, verdadeiramente, de conversão. Cada um e todos. Necessitamos de conversão pessoal e de conversão comunitária, nós que vivemos num mundo que é tão ao contrário do que nos propõe o Evangelho! Nós, que vivemos num mundo em que o importante é ser louvado pelos demais, é aparecermos publicamente! Nós, que vivemos num mundo que facilmente elogia aquele que rasga as suas vestes, mas onde quem ousa expor o seu coração à luz divina é ridicularizado e perseguido!

3. É verdade que a nossa civilização ocidental encontra grande parte das suas raízes na fé cristã, nas suas propostas de vida, nos seus valores e atitudes (e até nos seus ritmos temporais). Mas, sejamos honestos, este nosso mundo está tão longe de Jesus!

Este nosso mundo valoriza o “eu”, o subjectivo; o cristianismo valoriza o outro, a caridade. Neste nosso mundo somos convidados a desconfiar de tudo e de todos; o cristianismo tem na sua raiz a fé. Este nosso mundo vive para o presente; o cristianismo vive para a eternidade. Este nosso mundo exalta o poder; o cristianismo enaltece o serviço. Este nosso mundo procura a riqueza material; o cristianismo apresenta como caminho o pobre que é Jesus. Este nosso mundo coloca o homem no centro de tudo; o cristianismo coloca Deus no centro da nossa vida. Este nosso mundo celebra os heróis, aqueles que são recordados pelas obras que conseguiram realizar; o cristianismo olha para os santos, aqueles em quem Deus mostrou e tornou real o seu amor para com todos.

Está perdido este nosso mundo? Claramente corrompido? Definitivamente condenado? Até nisso o cristianismo é diferente, porque Jesus nos garante que o amor de Deus oferece sempre uma nova oportunidade, não ao pecado mas ao pecador. Sim, como afirma o Papa Francisco na sua mensagem, esta Quaresma mostra como “Deus não Se cansou de nós”.

Por isso o Santo Padre convida-nos: “Acolhamos a Quaresma como o tempo forte em que a sua Palavra nos é novamente dirigida: «Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egipto, da casa da servidão» (Ex 20, 2). É tempo de conversão, tempo de liberdade. […] Ao contrário do Faraó, Deus não quer súbditos, mas filhos. O deserto é o espaço onde a nossa liberdade pode amadurecer numa decisão pessoal de não voltar a cair na escravidão. Na Quaresma, encontramos novos critérios de juízo e uma comunidade com a qual avançar por um caminho nunca percorrido”.

Hoje, não iremos rasgar as nossas vestes. Mas vamos impor-nos as cinzas, como expressão da atitude interior de quem grita, uma vez mais, ao Senhor: “‘Perdoai, Senhor, perdoai ao vosso povo e não entregueis a vossa herança а ignomínia e ao escárnio das nações”, na certeza de que, uma vez mais, Ele se irá encher de zelo e ter compaixão deste seu povo que somos nós.