A maioria das celebrações litúrgicas em que participamos contam com a participação de coros. É a história de alguns deles que queremos aqui contar. Mas para começar quisemos esclarecer eventuais dúvidas, nomeadamente sobre o que é Música Sacra, Música Litúrgica e Música Religiosa e saber qual o seu estado na Diocese do Funchal.
Para isso falamos com o Pe. Ignácio Rodrigues, que não só nos esclarece essas dúvidas, como nos diz que é necessário sensibilizar os coros, os diretores de coros, maestros e maestrinas que, no culto divino, não pode ser executado qualquer estilo musical.
“Toda a música que não foi criada para a liturgia, nunca vai cumprir a sua missão” diz o sacerdote, segundo quem a Diocese do Funchal “é detentora de uma grande riqueza Musical sacra e litúrgica”. Há ainda que “ter em conta que a música sacra na liturgia nunca pode esquecer ou pôr de parte a assembleia”, o que o representa um retrocesso.
Jornal da Madeira – Uma dúvida muito comum quando pensamos sobre a música no catolicismo é diferenciar música sacra de música litúrgica…
Pe. Ignácio Rodrigues – Antes de apresentar as diferenças ou definir o que é a Música Sacra e Música Litúrgica, completaria apresentando uma outra caraterística da música: Música Sacra, Música Litúrgica, Música religiosa e Música Profana. Tentarei ser claro e direto, para percebermos bem cada uma delas.
Música Sacra – Aquela que é serva da Palavra de Deus, que ao ser criada, tem como missão santificar, elevar o crente a uma relação íntima e única com Deus.
Música Litúrgica – Aquela que é criada para o culto divino, para a liturgia.
Música Religiosa – Música que pela sua mensagem também faz crescer na fé todo o cristão. Crianças jovens e adultos.
Música Profana – Aquela que é criada fora do objetivo de ser cantada ou tocada no espaço litúrgico. Mas que por vezes é procurada para ser executada nas nossas celebrações.
“Quando a Música está ao serviço da palavra, transforma, converte, cria uma ligação forte e única entre Deus e a assembleia”.
A Música Sacra é aquela que, interpretando e expressando o sentido profundo do sagrado texto, acrescenta maior eficácia a esse mesmo texto, reunindo o sentimento da assembleia, elevando-a para Deus. A Música Sacra é aquela que está ao serviço da mensagem, da palavra.
Eis o testemunho de Santo Agostinho, da função da música sacra na liturgia: “Quanto chorei ouvindo vossos hinos, vossos cânticos, os acentos suaves que ecoavam em vossa Igreja! Que emoção me causavam! Fluíam em meu ouvido, destilando a verdade em meu coração. Um grande impulso de piedade me elevava, e as lágrimas corriam-me pela face, mas me faziam bem” (Santo Agostinho, Confissões 9). É o verdadeiro efeito que tem de causar a Música Sacra nas celebrações. Quando a Música está ao serviço da palavra, transforma, converte, cria uma ligação forte e única entre Deus e a assembleia.
A Música Sacra nunca serve de “adorno”, antes sim para melhor “glória de Deus e santificação dos fiéis, como nos diz o documento conciliar Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 112.
Será que qualquer música pode ser aceite e considerada como Música Sacra, só porque tem a palavra Deus, Jesus ou Virgem Maria? Não! Nem toda a música que fala de Deus ou de Jesus é sacra. A Música Sacra é aquela que, de preferência, contenha a mensagem bíblica. Palavra santa, aquela que nos santifica.
Aquela música que dignifica ainda mais as palavras do rito da liturgia. Exemplo: Antífonas de entrada, Ato Penitencial, Glória, Credo, Aleluia, Antífonas da Apresentação dos dons, Santo, Cordeiro e antífona pós-comunhão.
Já São Paulo, numa de suas epístolas recomendava: recitai “uns com os outros salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando ao Senhor em vosso coração” (Ef. 5, 19).
A Igreja apresenta como exemplo o canto gregoriano. Ocupa um lugar privilegiado. Como defende São Pio X, “como supremo modelo de música sacra”.
São Pio X e o Concílio Vaticano II, referem que na celebração dos ofícios divinos não se excluem de modo algum, outros tipos de música sacra, especialmente a polifonia. Estas novas linguagens musicais vão desenvolvendo e se impondo, mais a partir do século IX. Podemos dizer que encontram o auge da perfeição polifónica no século XV e XVI com o barroco. Exemplo de Oratórias, Motetos em que podemos apresentar um exemplo, a famosa Paixão segundo São Mateus de Bach.
Assim sendo, não nos deveríamos admirar que a igreja esteja vigilante e atenta e que por vezes aconselhe que determinadas músicas sejam evitadas em serem executadas nas nossas celebrações. Tudo o que é profano e que prejudique a dignidade das celebrações, deve ser evitado. Não se trata de criar leis só por sensibilidades subjetivas, mas sim, orientar e aconselhar o que é mais digno de ser cantado nas nossas celebrações.
“Não nos deveríamos admirar que a igreja esteja vigilante e atenta e que por vezes aconselhe que determinadas músicas sejam evitadas em serem executadas nas nossas celebrações”.
Jornal da Madeira – Quais são as principais características da Música Sacra e da Música Litúrgica? O que as diferencia? Qual é importância de ambas para a liturgia?
Pe. Ignácio Rodrigues -É muito recorrente colocar esta questão! Qual é a diferença entre a Música Sacra e a Música Litúrgica.
A música litúrgica, por sua vez, não somente tem o sagrado como temática, ela também exerce uma função específica dentro da celebração. Podemos dizer que a Música Sacra engloba toda a realidade da “Palavra Cantada”, como foi referido anteriormente, e a Música Litúrgica é aquela que é composta para o uso na liturgia, seguindo as necessidades do decorrer da celebração. Isto é, para o culto divino. Música Sacra e Música Litúrgica, estão intimamente relacionadas. A Música é como serva da Sagrada Liturgia.
Não quer dizer que sejam realidades separadas ou distintas no que diz respeito a Música Sacra ou Litúrgica.
Como foi referido anteriormente, a Música Sacra, estando ao serviço da Palavra, para a enriquecer e elevar o seu grau de santidade e a dos fiéis, a Música Litúrgica é criada para a celebração litúrgica.
Assim temos o exemplo da composição da Música litúrgica para os próprios tempos litúrgicos. Advento, Natal, Quaresma, Tempo Comum, Páscoa.
No início desta entrevista, referi que existe outro género de música, a saber, música religiosa. Esta, que não serve à liturgia sagrada ou para a celebração, muito tem crescido e sido implementada nas nossas celebrações. Deveria ser usada em todos os momentos de encontros ou realidades da comunidade, mas não nas celebrações litúrgicas. Música de mensagem cristã, etc. Mesmo assim, este estilo de Música Sacra deve ser incentivado, música carregada de mensagem cristã também educa, faz crescer em piedade e fé todo o povo de Deus. Crianças, jovens e adultos. Faz falta repetir, deveria ser executada em reuniões, encontros, retiros, meditações, recitação do terço. Deveríamos evitar nas celebrações litúrgicas.
Jornal da Madeira – Noutras dioceses há Escolas de Música Sacra. Em Roma existem até escolas superiores como, por exemplo, o Pontifício Instituto de Música Sacra, fundado por São Pio X em 1910 com a denominação de “Escola Superior de Música Sacra”. Seria uma boa ideia ter também um destes estabelecimentos na Diocese do Funchal, como forma de garantir a qualidade dos elementos que depois integram coros, por exemplo?
Pe. Ignácio Rodrigues – Na nossa Diocese não temos escolas superiores de Música Sacra, como o Pontifício Instituto de Música Sacra em Roma e onde tive a graça de frequentar.
Ao longo de várias décadas, o Secretariado Diocesano de Liturgia, tem desenvolvido a formação para os variados movimentos paroquiais. Um deles é a música, formação musical e órgão.
Tem havido, cada vez mais uma grande procura na formação do órgão. O objetivo da Escola Diocesana de Liturgia, é dar o melhor conhecimento no acompanhamento adequado e correto da harmonia nos nossos cânticos nas celebrações litúrgicas. O nosso objetivo não é o de formar executantes profissionais deste instrumento. Esse é o grande papel do nosso Conservatório existente na nossa ilha. O nosso objetivo, é formar novos, ou que já tocam nas suas paróquias a aprofundar a forma correta e digna de acompanhar os cânticos na liturgia.
“Em vários documentos da igreja sobre a música sacra, é feita referência ao facto de que a música sacra na liturgia nunca pode esquecer ou pôr de parte a assembleia”.
Jornal da Madeira – Em traços gerais o que se pode dizer sobre o estado da Música Sacra e Litúrgica na Região?
Pe. Ignácio Rodrigues – Ao longo dos séculos a nossa Diocese do Funchal tem vivido todas as realidades no que diz respeito à Música Sacra. Após a povoação da nossa ilha e com a construção da nossa Sé e igrejas por toda a ilha, seria o canto gregoriano predominante e obrigatório nas celebrações litúrgicas. Com o passar dos anos, antes do Vaticano Segundo e pós Vaticano II, já havia sacerdotes que, com a formação musical e coral que recebiam no Seminário Maior do Funchal, e pela necessidade pós Vaticano II de terem cânticos para as celebrações em língua vernácula, compunham músicas para as celebrações. Podemos consultar, e é do nosso conhecimento um vasto repertório existente na nossa ilha que está publicado em livro. E também registado em CD.
Claro que ainda temos um grande caminho a percorrer. E sempre será assim. Não alcançamos ou alcançaremos a perfeição.
Em alguns momentos, sentimos que estávamos no verdadeiro caminho de como deve ser o nosso ministério da música na liturgia. Em vários documentos da igreja sobre a música sacra, é feita referência ao facto de que a música sacra na liturgia nunca pode esquecer ou pôr de parte a assembleia. Notamos um esquecimento deste ponto importante. Acho que estamos a retroceder neste sentido. O coro tem os seus momentos de participar duma forma mais elaborada, e a assembleia tem de ser chamada a participar em diversos momentos da liturgia.
Conheço várias dioceses por onde passei em Lisboa, Roma e Paris onde estudei e estive como capelão da comunidade portuguesa, em que não existe um repertório tão vasto da Música para a liturgia. No nosso país há, sem dúvida, um grande repertório de música para a liturgia. E a nossa Diocese do Funchal também é detentora de uma grande riqueza musical sacra e litúrgica.
Temos de sensibilizar os coros, os diretores de coros, maestros e maestrinas que, no culto divino, não pode ser executado qualquer estilo musical. Toda a música que não foi criada para a liturgia, nunca vai cumprir a sua missão. Acho que uma das celebrações que temos de sensibilizar e trabalhar mais em comum, são as celebrações do matrimónio. Para as nossas celebrações, por vezes passa pela música pedida. É o que os músicos querem, é o que os noivos querem porque é bonito. Trabalhemos todos juntos para uma nova forma de viver as nossas celebrações litúrgicas. Não é só o bonito e profano que deve reinar só porque é bonito. Os documentos da igreja dizem-nos que sempre tem de haver um critério na escolha do repertório a ser usado para as celebrações.