Suponho que não há português que não conheça Camões. Mas o que sabe sobre Camões? Que era cego de um olho, que era desordeiro, várias vezes preso, amador de muitas mulheres, teve a vida pelo mundo em pedaços repartida, morreu pobre e foi um grande poeta. Quem fez a antiga quarta classe, como eu, aprendeu que era celebrado a 10 de junho, dia feriado, considerado dia de Camões e segundo os valores salazaristas, igualmente dia de Portugal e da Raça. Como no mês de junho se festejam muitos santos havia até quem julgasse que era mais um santo. Lembro-me de uma vendedeira na praça se referir ao 10 de junho como o dia de São Camões. Os tempos mudaram. Com a escolaridade alargada, já todos sabem quem foi Camões que de santo não teve nada. Foi sim o mais brilhante poeta europeu do seu tempo, o Príncipe dos Poetas, como foi chamado. Com outros valores, a Terceira República converteu o 10 de junho no dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas. Camões e Portugal são indissociáveis. Nesse longo poema a que chamou Os Lusíadas, isto é, os Portugueses,
Camões, partindo da viagem de Vasco da Gama à descoberta do caminho marítimo para a Índia, introduz toda a História de Portugal, desde a sua fundação até à formação do Império Português, no Oriente. É longo: 8.816 versos repartidos por dez capítulos que, num poema épico, se chamam Cantos. Não é fácil a sua leitura. Feito segundo os moldes literários do seu tempo, é introduzida toda uma outra história fantasiosa, com deuses, deusas, sereias, ninfas, todas as divindades pagãs que pertencem à Grécia Antiga. Era assim que o poema tinha de ser construído. Ora para um leitor contemporâneo, esta trama é uma das muitas dificuldades que o poema oferece. Depois há mais. Há todo um conjunto de saberes relativos a Geografia, História Universal, História de Portugal, Filosofia, Religião, Ciência, Ética. Até mesmo os alunos não leem o poema completo. Leem apenas alguns excertos incluídos no manual, ficando sem uma ideia do poema na sua globalidade. No meu tempo de aluna, estudávamos o poema pelo próprio livro, embora com a ausência do Canto IX, considerado demasiado erótico. Mas o estudo que fazíamos era muito redutor: não havia a preocupação de dar a conhecer o poema na sua totalidade. Quando chegou a minha vez de dar Os Lusíadas como professora, criei o meu próprio método: comecei por ensinar a forma como os Gregos antigos e depois os romanos explicavam o mundo, a natureza como ela existia e os próprios sentimentos. Para tudo havia uma divindade. Ainda hoje, quando alguém está apaixonado dizemos que foi atingido por Cupido, deus do amor. Ou, quando alguém vai dormir, dizemos que vai para os braços de Morfeu, deus do sono. Assim, quando os alunos iniciavam a leitura do poema, já não estranhavam a existência daquelas divindades todas. E disse bem, a leitura do poema. Porque era esse o meu objetivo: levar os alunos a lerem o poema na minha companhia e orientação. O poema é longo, repito. Portanto, as partes mais narrativas, mais históricas eram resumidas por mim, mas com os alunos acompanhando pelo livro. E assim se chegava ao fim com a leitura integral, incluindo o canto nono. Hoje lamento que os alunos não estudem Os Lusíadas pelo próprio livro. Mas compreendo a dificuldade que é ler um texto publicado há 450 anos. Por isso, deitei mãos à obra e aventurei-me a fazer uma edição baseada na experiência que tive como professora. Tive o apoio das Edições Vieira da Silva, o carinho e o profissionalismo do paginador que pôs todo o cuidado em que a edição fosse visualmente atrativa. Saber os Lusíadas coloca o poema ao alcance de qualquer leitor. Não é fácil a leitura dos Lusíadas. Tal como não foi fácil a sua feitura. É um poema longo, em dez capítulos que, num poema heroico se chamam cantos, decorrendo em vários planos. Partindo da viagem de Vasco da Gama para descobrir o caminho marítimo para a Índia, Camões introduz toda a História de Portugal, desde a sua fundação até à formação do Império Português no Oriente, no séc. XVI. Mas, se fosse apenas um relato em verso de toda esta aventura, não seria a obra magistral que é. Paralelamente à viagem, movimenta-se uma intriga entre deuses que favorecem os Portugueses e deuses que tentam a todo o custo destruí-los. E começa aqui a primeira dificuldade: quem são estes deuses e estas deusas? Porque aparecem no poema? Ler os Lusíadas é, de facto, uma aventura. Mas não vou deixar o leitor sozinho. Vou sempre acompanhá-lo. Para isso, dividi este livro em três partes distintas, embora interligadas: a primeira faz uma exposição do que é a mitologia greco-romana. Assim, quando o leitor começa a leitura do poema, já está familiarizado com os deuses, deusas, heróis, sereias, referenciados logo no início e ao longo de toda a obra. A segunda parte propõe a leitura do poema, acompanhada por mim: antes de cada canto, faço uma introdução, apontando os aspetos mais relevantes. As estâncias menos significativas são apresentadas resumidas, sem que isso impeça a visão panorâmica do poema. Finalmente, a terceira parte situa Os Lusíadas no seu tempo histórico, cultural e literário. E aí se vai compreender por que razão os deuses mitológicos aparecem a comandar a viagem de Vasco da Gama.
Saber os Lusíadas é um todo. As suas três partes, embora se possam ler de forma autónoma, cruzam-se e interligam-se, constituindo uma unidade homogénea e coerente.
Cecília Rezende