Pe. Aires Gameiro: “Celebramos este ano o centenário da ereção canónica da comunidade dos irmãos de S. João de Deus na Madeira”

Foto: Jornal da Madeira

Este ano a Ordem Hospitaleira de São João de Deus está a celebrar duas datas importantes: os 450 anos da aprovação papal dos Irmãos de S. João de Deus e os 100 anos da fundação da primeira comunidade dos irmãos na Madeira.

O Jornal da Madeira falou, na passada quarta-feira, dia 26 de outubro, com o Pe. Aires Gameiro, O.H, que organizou uma sessão cultural comemorativa para o dia 31 de outubro, às 16 horas, no Museu de Arte Sacra do Funchal. Neste encontro serão apresentados dois livros da sua autoria: “O Beato João Jesus Adradas e a fundação da Casa de Saúde S. João de Deus no Funchal 1922-1924”, em co-autoria com Carmina Montezuma e João Castela Oliveira e “Missionário a toda a prova em Moçambique. O Padre Manuel Nogueira, O.H.”.

Qual o significado da bula de aprovação do Papa para a Ordem Hospitaleira de S. João de Deus?

Pe. Aires Gameiro – Após a morte de S. João de Deus, em 1550, a fundação hospitaleira era muito popular por estar próxima dos pobres, mas carecia de afirmação pública e estatuto legal canónico.

Já estava inaugurado em 1553 o terceiro hospital de S. João de Deus construído com esmolas e com orientação técnica dos Jerónimos, um hospital que existe ainda hoje ao lado da basílica de Granada, é um monumento nacional atualmente.

Pelos anos de 1560 começou a haver intrusos, alguns falsos irmãos disfarçados de hábito começaram a percorrer as terras para recolher esmolas alegando que eram para o hospital de S. João de Deus.

Também os frades Jerónimos alegavam que tinham dirigido as obras do novo hospital e administrado as ofertas para a construção e por isso deviam continuar as geri-lo, para eles os irmãos nem eram religiosos.

“Em 1 de Janeiro de 1572, Pio V concedeu a Bula Licet ex debito, pela qual ele aprovava o instituto Religioso de João de Deus e dava aos Irmãos a Regra de Santo Agostinho”

Qual era o estatuto canónico dos irmãos nesse tempo?

Pe. Aires Gameiro – Tinham a aprovação do arcebispo de Granada, com constituições provisórias para o hospital de Granada. Funcionava como uma espécie de congregação, digamos, diocesana, na dependência do bispo. O bispo pôs lá um reitor, que era um capelão e seu delegado no hospital. Que foi o que depois escreveu a primeira biografia de S. João de Deus, o Padre Francisco de Castro.

Quando é que os irmãos sentiram necessidade de pedir aprovação do Papa?

Pe. Aires Gameiro – Os irmãos que continuaram o projeto de assistência de S. João de Deus estavam sujeitos aos oportunistas fraudulentos e às ambições de grupos de maior poder e estatuto.

Não sabiam o que é que haviam de fazer. Alguém terá sugerido: “Isto só com uma aprovação papal”. Então dois irmãos, Sebastião Arias e Pedro Soriano, partem de Granada para Roma para oferecerem os seus serviços ao Papa que era precisamente o dominicano Pio V e para conseguirem dele a aprovação pontifícia. Levavam uma documentação bem organizada que explicava o que era o hospital de S. João de Deus. Em Nápoles são solicitados por D. João de Áustria que estava a preparar uma armada para fazer frente aos otomanos na Grécia, para ir socorrer os feridos na batalha de Lepanto e só após a vitória se apresentaram ao Papa. É uma tradição que terá dito: “Esta é a flor que faltava no jardim da Igreja”.

Em 1 de Janeiro de 1572, Pio V concedeu a Bula Licet ex debito, pela qual ele aprovava o instituto Religioso de João de Deus e dava aos Irmãos a Regra de Santo Agostinho e o escapulário que os distinguiria dos intrusos embusteiros que andavam a desviar as esmolas dos seus hospitais.

Isso resolvia o problema com os frades Jerónimos?

Pe. Aires Gameiro – A bula tirava aos Jerónimos a pretensão jurídica de ficarem com o hospital João de Deus de Granada. Os Jerónimos, como tinham sido eles, que tinham assistido à construção, porque tinham arquitetos, queriam ficar com a administração do hospital. O bispo em Granada abriu um processo canónico para decidir a questão, demorou quase vinte anos.

Livros apresentados a 31 de outubro no Museu de Arte Sacra

Mudamos agora o assunto para a outra data que a Ordem Hospitaleira está a celebrar este ano, os 100 anos da comunidade dos irmãos de S. João de Deus na Madeira

Pe. Aires Gameiro – Celebramos este ano o centenário da ereção canónica da comunidade dos irmãos de S. João de Deus na Madeira. A aprovação da Santa Sé foi no dia 10 de outubro de 1922.

O bispo D. Manuel Agostinho Barreto desde 1900 conheceu o Telhal [Casa dos irmãos de S. João de Deus, Lisboa] e mandava para lá alguns que lhe pediam para serem assistidos, inclusivamente sacerdotes.

Entretanto a dona desta Quinta [do Trapiche] se prepôs oferecer a quinta para que os irmãos pudessem assistir os doentes na Madeira. Na altura surgiram interferências que diziam: “Não queremos cá jesuitismos”.

A verdade é que quando eles cá chegaram para tomar conta da quinta em 1908, vieram dois irmãos, um era o superior do Telhal, Cosme Millan e o outro era o Padre Augusto Carreto Barros, quando vieram para tomar a quinta, a dona disse que tinha mudado de ideia. Depois entregou a quinta à diocese.

Entretanto o Visconde Cagongo construiu o palacete da Câmara Pestana e começou a funcionar em 1906 o manicómio, que depois entregou à Junta Geral. Funcionou sempre mal. Em maio de 1920 o presidente da Junta Geral que era o Vasco Gomes Marques convocou uma reunião para o entregar aos irmãos. Estava convencido que a sua ideia seria aprovada e mandou vir os irmãos para tomar conta da casa, os irmãos estavam na Madeira. Um deles era um madeirense António Maria Rodrigues e o outro era Manuel Gonçalves que depois fundou a casa. Mas tiveram de ir embora. Não foi aprovada a entrega da casa aos irmãos.

Quando é que os irmãos se estabeleceram na Madeira?

Pe. Aires Gameiro – O Dr. João de Almada falando com o bispo, comunicou com os irmãos dizendo que o bispo estava disposto a alugar a Quinta [do Trapiche] para virem de maneira independente. Vieram Manuel Maria Gonçalves e o António Maria Rodrigues. Hospedaram-se no seminário. A certa altura o bispo pediu que primeiro fossem levar um doente ao Telhal e depois voltavam. Ao voltarem já não veio o madeirense, veio o irmão Siforiano Lucas Feijão. Foram os dois fundadores. Vieram para a casa a 1 de junho de 1922. Começaram com os trabalhos de adaptação da quinta. Em 1923 veio o beato João Jesus Adradas, superior provincial, ajudar a programar.

Foto: PPOHSJD

Será apresentado no dia 31 de outubro, o seu livro sobre o Padre Manuel Nogueira, pode falar-nos como surgiu esta obra?

Pe. Aires Gameiro – Os irmãos foram para Moçambique em 1943 para tratar doentes mentais, a pedido de um madeirense, o cardeal natural de S. Jorge, D. Teodósio [de Gouveia]. A província portuguesa foi uma das primeiras a ter irmãos nas missões. Em Portugal isso enxertou na concordata e no estatuto missionário.

“A prisão foi horrorosa, foi um martírio. Fizeram de tudo para o humilhar. Mas a maior dificuldade foi a de não o deixarem voltar para Nampula”

Foram três irmãos para dar assistência aos doentes mentais em Maputo, na Vila Luísa, Marracuene. Mais tarde os irmãos iniciaram um projeto próprio que chegou a ter 500 doentes no norte da cidade. Em 1944 os irmãos foram para uma leprosaria. Também lá esteve um padre madeirense, de Santo António, Américo Capelo.

Em 1972, faz hoje 50 anos, que o Pe. Nogueira foi para essa leprosaria, depois daí a pouco tempo a Ordem inaugurou uma clínica de psiquiatria em Nampula, porque as leprosarias eram aldeias dos serviços de saúde.

Pode falar-nos do processo de beatificação do Padre Manuel Nogueira?

Pe. Aires Gameiro – Em 1979, as coisas complicaram-se em Moçambique e o Padre Manuel nogueira foi preso. Esteve na prisão primeiro em Nampula, soltaram-no, tornaram a prendê-lo. Andavam a ver quem fazia a mobilização da população. Tornou a ser preso. Mais tarde, transferiram-no para a prisão política de Machava, no sul. Eles queriam encontrar um pretexto para o expulsar. Ele tinha muito medo de o quererem separar do rebanho. Mas a acusação principal era porque ele atraía multidões.

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Tempos de Prisão

1979, 11 de maio a 7 de junho – Foi preso pela 1ª vez na cadeia de Nampula e submetido a interrogatório. /1979, 8 de julho a 4 de outubro – Foi preso pela 2ª vez na cadeia de Nampula. / 1979, 4 de outubro a 15 de novembro – Transferido para a prisão política de Machava (Maputo), onde lhe foi atribuído o nº 1452. / 1979, 15 de novembro a 1980, 25 de maio – Preso com residência fixa em Maputo, habitando no Seminário Maior dessa cidade, juntamente com os dois colegas detidos. (in www.isjd.pt)
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A certa altura as coisas acalmaram e com a ajuda do Manuel Vieira Pinto [Arcebispo de Nampula], foi solto com outros dois que também estavam presos com ele e foi posto em residência vigiada em casa do arcebispo em Maputo.
A prisão foi horrorosa, foi um martírio. Fizeram de tudo para o humilhar. Mas a maior dificuldade foi a de não o deixarem voltar para Nampula. O [superior] geral pediu-o para fazer um relatório do tempo de prisão. Ele tinha tudo de memória. Ele esteve sem papel, nem nada, até o terço lhe tiraram e fez um relatório em português e em italiano.
Esse relato é uma base grande para perceber o que ele passou. A maneira com que fazia oração. Aquilo que ele passou na prisão, viveu-o com virtudes heroicas. Ele podia ter vindo embora, como os outros. A certa altura só estavam dois irmãos de Portugal.