Beato Carlos: Bispo presidiu a Eucaristia que marcou encerramento do Tempo Jubilar

Foto: Duarte Gomes

O bispo do Funchal presidiu ao fim da tarde de sexta-feira, dia 21 de outubro, a uma Eucaristia na igreja do Monte que marcou o encerramento do Tempo Jubilar, concedido pelo Santo Padre, e que se propôs celebrar o centenário do falecimento do Beato Carlos, o “atleta de Cristo”, como lhe chamou D. Nuno.

Na sua homilia, o prelado lembrou que este ano “serviu para acolher dum modo mais abundante a misericórdia divina”, mas não se “encerra o exemplo e (muito menos) a intercessão do Beato Carlos em nosso favor e em favor da Europa e do mundo”.

Ele que, frisou o bispo do Funchal, “quis que os seus restos mortais ficassem na nossa Ilha e sob o olhar materno de Nossa Senhora do Monte, nos ajude a escolher sempre a Cristo e as suas propostas de vida eterna. Que o mesmo é dizer: a revestir-nos da armadura de Deus e a travar generosamente a luta da vida cristã”.

E se neste dia, em que fazemos memória do Beato Carlos de Áustria, “sublinhamos esta dimensão da luta”, frisou, “não é apenas por ele ter sido um militar, durante vários anos envolvido numa guerra — ainda que tudo tenha feito para a terminar, alcançando a paz”.

Na verdade, “fazemo-lo sobretudo porque também o Bem-aventurado Carlos, ao longo de toda a sua vida, travou inúmeras batalhas interiores e espirituais, que se traduziram, simultaneamente, em escolhas e atitudes de vida, cheias de consequências para si mesmo, para a sua família e para os povos por quem, enquanto rei e imperador, era o primeiro responsável”.

A vida de Carlos de Áustria, reconheceu D. Nuno Brás, “foi de exigência: exigência na sua formação nas virtudes humanas e intelectuais, de que se desempenhou o melhor possível, segundo o testemunho dos seus mestres; mas, sobretudo, de exigência no seu percurso de fé”.

E foi essa mesma exigência que, entre outras consequências, “o conduziu a preferir o exílio a recusar o compromisso assumido para com Deus e os povos que servia como rei e imperador.

E foi essa mesma exigência que, por fim, “o fez viver dum modo heróico o sofrimento que o conduziu à morte, na pobreza e na quase solidão da Quinta do Monte, longe da pátria e acompanhado apenas pela sua família e alguns (poucos) amigos”.

Mas, “engana-se quem julga que Carlos não lutou. No seu interior, no seu coração, lutavam constantemente o que percebia ser a vontade de Deus frente às propostas de vitória humana”.

A vida cristã, a vida da fé, foi para Carlos e é para todos nós uma luta. O pecado “procura convencer-nos do mais fácil, do mais rápido, do mais eficaz, daquilo que, aos olhos de todos, proporciona uma melhor imagem, mesmo que a custo da nossa relação com Deus e do nosso dever de cuidar e amar o próximo”.

Não admira, pois, que “o caminho existencial do cristão se veja cheio de dificuldades, tão estranho ele é para o mundo em que vivemos, rodeado de bem-estar e de facilidades”.

E, no entanto, “bastaria que considerássemos a simples experiência humana para percebermos como as escolhas mais fáceis e imediatas raramente conduzem a uma vida feliz, sábia e cheia de significado”.

“A experiência humana ensina antes que a luta, a maturação, a disciplina e a exigência se tornam meios para fazer mais resiliente o espírito humano, conduzindo-nos a patamares mais altos de humanidade”, frisou D. Nuno que acrescentou a dada altura, que neste caso a luta “conduz à derrota do homem velho para que o homem novo — Cristo ressuscitado — possa vencer”.

Depois de uma saudação inicial às entidades locais e aos membros da delegação checa presentes, D. Nuno terminou esta Eucaristia, concelebrada pelo vigário geral e vários outros sacerdotes, lembrando que neste dia se celebrava também o aniversário do matrimónio de Carlos com Zita.

A celebração terminou com um momento de oração junto ao túmulo do Beato. 

Publicamos na íntegra a homilia do bispo do Funchal: 

MEMÓRIA DO BEATO CARLOS
21 de Outubro de 2022
Encerramento do Tempo Jubilar

“Temos de lutar” — dizia-nos o Apóstolo Paulo na Iª Leitura de hoje, retirada da Carta aos Efésios (Ef 6,12).

Se, neste dia em que fazemos memória do Beato Carlos de Áustria, sublinhamos esta dimensão da luta, não é apenas por ele ter sido um militar, durante vários anos envolvido numa guerra — ainda que tudo tenha feito para  a terminar, alcançando a paz.

Se hoje falamos em luta, fazemo-lo sobretudo porque também o Bem-aventurado Carlos, ao longo de toda a sua vida, travou inúmeras batalhas interiores e espirituais, que se traduziram, simultaneamente, em escolhas e atitudes de vida, cheias de consequências para si mesmo, para a sua família e para os povos por quem, enquanto rei e imperador, era o primeiro responsável.

A vida cristã é, de facto, toda ela, uma luta. Em nós, a inclinação para o pecado (que nos marca desde a origem), procura convencer-nos do mais fácil, do mais rápido, do mais eficaz, daquilo que, aos olhos de todos, proporciona uma melhor imagem, mesmo que a custo da nossa relação com Deus e do nosso dever de cuidar e amar o próximo. É a exaltação do Eu, acima de tudo e de todos.

E, no entanto, bastaria que considerássemos a simples experiência humana para percebermos como as escolhas mais fáceis e imediatas raramente conduzem a uma vida feliz, sábia e cheia de significado. A experiência humana ensina antes que a luta, a maturação, a disciplina e a exigência se tornam meios para fazer mais resiliente o espírito humano, conduzindo-nos a patamares mais altos de humanidade.

Mas a vida cristã (o próprio Jesus) convida-nos ainda a ir mais longe. Porque à fé não lhe basta humanizar o homem e a sociedade em que vive: a fé procura divinizar o homem e o mundo que ele habita; ajuda-o a partilhar a vida divina; a acolher a oferta da salvação que o próprio Deus faz a todos em Nosso Senhor Jesus Cristo, deixando, desse modo, transformar-se radicalmente.

Não espanta, portanto, que o caminho existencial do cristão se veja cheio de dificuldades, tão estranho ele é para o mundo em que vivemos, rodeado de bem-estar e de facilidades. Não se trata, como é óbvio, de impor nada a quantos nos rodeiam — muito menos de impor a fé, pois que esta exige, por si mesma, a liberdade plena, total, daquele que a assume como centro da existência.

Mas não tenhamos dúvidas de que o caminho do cristão é uma porta estreita que o mundo procura evitar (cf. Mt 7,13-14; Lc 13,22-25). É o percurso exigente (cf. Mt 5,21-22), cheio de obstáculos (cf. Mt 19,16-26; 23,13-32), mesmo violento (cf. Mt 11,12), que conduz ao Reino. É o percurso que não é próprio para quantos têm o seu coração nas riquezas, que estão apegados às realidades mortas do passado, ou que não são capazes de amare perceber tudo com o coração de Deus — mesmo a sua relação com a família mais próxima (cf. Mt 8,19-22).

A fé em Cristo, quer dizer: este caminho vital de configuração cada vez maior com o Senhor, é sempre um percurso de luta. De luta interior e de luta exterior.

É um percurso interior de dúvidas que conduz à procura e ao encontro da Verdade; é um percurso de recomeços constantes e perseverantes que conduz à vivência da fidelidade; é um percurso de derrotas que o egoísmo e o orgulho vão sofrendo, e que conduz à docilidade para com a vontade de Deus.

Mas o caminho do cristão é, igualmente, a proposta pública de Deus e do seu projecto amor para com todos. Proposta que, diante de todos, afirma uma possibilidade diferente do pensar e do agir: diferente das opções habituais, em que o mais fraco é esmagado pelo mais forte; o que não tem acesso à informação derrotado pelo mais sábio; o que não é famoso, olhado como insignificante.

Ao contrário, o caminho do cristão é a constante proposta do amor de Deus, enfrentando o orgulho de quem julga tudo saber e poder; é a proposta da primazia do próximo, frente ao egoísmo do Eu; e é também, por isso, a proposta de uma conversão social do mundo em que vivemos, e onde o poder, o dinheiro ou a fama se arvoram em centros da vida.

É uma proposta feita, desde logo, com a consciência de que, também em nós, habita o pecado. Ao contrário, como afirma S. Paulo, somos os primeiros e os maiores pecadores (1Tim 1,15)! Com efeito, é em vasos de barro que trazemos o tesouro do nosso ministério — tesouro que temos obrigação de, diligentemente, a todos apresentar.

Esta luta que caracteriza a vida cristã é pois, em primeiro lugar, uma luta travada em cada um de nós. Luta que conduz à derrota do homem velho para que o homem novo — Cristo ressuscitado — possa vencer. É a luta de que sai vitorioso aquele que é capaz de, dizendo diante de todos “Senhor, Senhor”, fazer coincidir essas suas palavras de louvor com a realização da vontade do Pai. É a luta daquele que procura a santidade; é a luta daquele que edifica a sua vida sobre o rochedo inabalável que é Cristo. Esse é, diz-nos o Senhor Jesus, o homem sensato que edificou sabiamente a casa da sua vida. Mas é, também, a luta daquele que é capaz de propor sempre Deus e a sua vontade diante de todos, publicamente, dando origem a novos modos de relacionamento social.

  1. Mesmo por entre as facilidades de que gozava um príncipe Habsburgo na Viena de finais do século XIX e princípios do século XX, a vida de Carlos de Áustria foi de exigência: exigência na sua formação nas virtudes humanas e intelectuais, de que se desempenhou o melhor possível, segundo o testemunho dos seus mestres; mas, sobretudo, de exigência no seu percurso de fé. Este caminho conduziu-o não apenas a excelentes resultados escolares como também a momentos diários de oração, unidos à sensibilidade constante para com os mais pobres, a quem procurava ajudar por todos os modos.

Foi essa mesma exigência que o levou, depois, à preparação séria do seu matrimónio e à afirmação que partilhou com a noiva: “agora devemos ajudar-nos mutuamente a chegar ao céu”. Foi também essa exigência que o fez, logo que subiu ao trono, procurar a obtenção de acordos de paz por todos os meios possíveis, chegando mesmo a colocar em causa eventuais vitórias militares. Foi ainda essa mesma exigência que o conduziu a preferir o exílio a recusar o compromisso assumido para com Deus e os povos que servia como rei e imperador. E foi essa mesma exigência que, por fim, o fez viver dum modo heróico o sofrimento que o conduziu à morte, na pobreza e na quase solidão da Quinta do Monte, longe da pátria e acompanhado apenas pela sua família e alguns (poucos) amigos.

Engana-se quem julga que Carlos não lutou. No seu interior, no seu coração, lutavam constantemente o que percebia ser a vontade de Deus frente às propostas de vitória humana. Com efeito, Carlos ultrapassou, de modo heróico — afirma o seu processo de beatificação —, as tentações de seguir os costumes propostos pela sociedade do seu tempo e por tantos que se diziam seus amigos; ultrapassou a sede de vitória militar a qualquer custo que muitos dos seus colaboradores mais chegados lhe propunham; ultrapassou a oferta duma vida descansada e sem dificuldades, que os vencedores da Iª Guerra Mundial lhe faziam, em favor da fidelidade ao compromisso que assumira para com Deus e para com os povos que lhe tinham sido confiados. Na luta cristã, Carlos escolheu a medida mais alta e exigente; escolheu a vontade de Deus; escolheu a santidade.

  1. Com a presente celebração, encerramos o tempo jubilar, que nos foi concedido pelo Santo Padre, e que se propôs celebrar o centenário do falecimento deste “atleta de Cristo”., acolhendo dum modo mais abundante a misericórdia divina Mas não se encerra o exemplo e (muito menos) a intercessão do Beato Carlos em nosso favor e em favor da Europa e do mundo.

Ele, que quis que os seus restos mortais ficassem na nossa Ilha e sob o olhar materno de Nossa Senhora do Monte, nos ajude a escolher sempre a Cristo e as suas propostas de vida eterna. Que o mesmo é dizer: a revestir-nos da armadura de Deus e a travar generosamente a luta da vida cristã.