D. Alfredo Caires: “Agora, o grande projeto é a reconstrução das missões”

Foto: Jornal da Madeira

D. José Alfredo Caires de Nóbrega, dehoniano, natural do Caniço, está em Madagáscar há mais de 40 anos. Primeiro, como missionário, e desde 2001, como bispo da diocese de Mananjary. 

O Jornal da Madeira encontrou-se com este bispo madeirense, de passagem pela Madeira, que nos falou do violento ciclone que se abateu no início deste mês de fevereiro, precisamente no território da sua diocese, provocando mais de uma centena de mortos e a destruição de muitas aldeias. O ciclone “Batsirai” deixou a cidade “completamente dizimada”. Tudo ficou destruído. “Agora o grande projeto é a reconstrução das missões. Vamos fazer um ano zero para a recuperação”.

Nos últimos dias, Madagáscar foi atingido pelo ciclone “Batsirai”. Os problemas naturais têm sido frequentes?

D. Alfredo Caires – O problema que temos em Madagáscar é que na parte sul da minha diocese, tem uma grande região que é um bocado deserta, seca, que só produz se chover. Há três anos que a chuva não é suficiente, as pessoas não cultivam. A situação está numa miséria. O governo tem sempre planos para intervir neste tempo, que a população chama de “kere”, situação de seca e fome. Mas a resposta fica sempre nos ares. As pessoas e instituições também não levam a coisa a sério. Mesmo os dons que são dados para camiões para transportar água, as ferragens de poços que é preciso limpar e conservar, esse trabalho não é feito. 

“Há três anos que a chuva não é suficiente, as pessoas não cultivam. A situação está numa miséria. O governo tem sempre planos para intervir neste tempo, que a população chama de “kere”, situação de seca e fome. Mas a resposta fica sempre nos ares”.

O problema da seca está a agravar-se?

D. Alfredo Caires – Sim, este problema tem vindo a manifestar-se mais. De um lado de Madagáscar há muita água, do outro, o problema da seca. Na minha diocese, a seca não é tão grave. Estamos numa região tropical. Temos rios e os “pangalanas”, o que nós chamamos, para dar um exemplo, uma espécie de “Ria de Aveiro”, mas muito mais estendida, tem mais de 300 km de comprimento. Depois tem grandes lagos. 

Sente algum efeito das alterações climáticas?

D. Alfredo Caires – Sim, sente-se. Por exemplo este ciclone é já o segundo este ano. Houve um “ana” e este “betsarai”. A seca do sul também é já um  fenómeno de mudança climática que leva à deslocação das pessoas. As pessoas mudam do sul para o norte.

A nível social, como caracteriza a situação em Madagáscar? 

D. Alfredo Caires – Estamos num país muito pobre e de muita corrupção. É uma pobreza, muito difícil de erradicar, devido aos costumes, àquilo que está enraizado no coração do malgaxe. O malgaxe tem ambições, mas ao mesmo tempo quer estar na sua terra, isso dá-lhe um estado de pobreza, porque não sai. 

Sobre a corrupção, vê-se em todos aqueles que têm a ambição de comandar ou de ter, e que rapam aos outros tudo o que podem, sem piedade. 

Como tem sido a ação evangelizadora da Igreja?

D. Alfredo Caires – Em primeiro lugar é estar atento às necessidades das pessoas. Desde o ensino, a saúde, o ensino prático da agricultura. Isso faz parte da evangelização. Não se pode dizer que o missionário se serve disso para fazer proselitismo, não, essa ideia é falsa. Abrimos espaço a todos. Não estamos a ver se o outro se converte ou não. 

Quando vou às escolas, costumo dizer mesmo. Hoje estamos a rezar aqui todos juntos: católicos, protestantes… mas domingo cada um reza no seu lugar. 

“A missão é uma atividade simples. Faz-se aquilo que se pode. Visita-se as comunidades, promove-se a relação inter-pessoal, estar com as pessoas, rezar juntos. Isto vai criando amizade, uma relação, e a mensagem vai passando. A mensagem vai passando com a vida, conviver com as pessoas, não com discursos, que pouco valem”.

Está 40 anos em Madagáscar, como tem decorrido o seu trabalho missionário?

D. Alfredo Caires – Eu comecei como missionário. A missão é uma atividade simples. Faz-se aquilo que se pode. Visita-se as comunidades, promove-se a relação inter-pessoal, estar com as pessoas, rezar juntos. Isto vai criando amizade, uma relação, e a mensagem vai passando. A mensagem vai passando com a vida, conviver com as pessoas, não com discursos, que pouco valem. Esta atitude está presente em todas as coisas, seja no ensino, nas nossas escolas, nas nossas sessões de formação. Há muita coisa que passa. Ao mesmo tempo, os cristãos fazem passar a mensagem no seu comportamento na aldeia, vivem no espirito cristão. 

Portanto, a missão é uma coisa simples. Preocupar-se com as escolas e a saúde. 

Naquele tempo, quando ia visitar as comunidades, levava sempre remédios para o paludismo, antibióticos… Fazíamos a distribuição de medicamentos. Hoje já não se faz isto. Agora o sistema de saúde está mais desenvolvido. Vendem-se medicamentos por todo o lado.

Há 20 anos, depois de ter sido ordenado bispo, procuro realizar, mais ou menos, o plano pastoral, que foi sempre sinodal.

Então, a sinodalidade já está presente na sua diocese há muito tempo? 

D. Alfredo Caires – Em cada ano, fazemos uma espécie de sínodo com um tema próprio. Dura uma semana. Este ano o nosso tema de trabalho é sobre sacramentais. 

Mas porque os sacramentais? Porque mesmo na primeira evangelização, há muitas pessoas que procuram bênçãos, benção da água, de objetos. É importante saber o valor e onde se podem dirigir. Uma questão que se põe é saber se o sacramental é só para os católicos, ou também para os não católicos? Porque lidamos com muita gente. Temos 150 mil de católicos num milhão e meio de habitantes, mas temos cerca de 200 mil que não são católicos, não são batizados, mas que vêm à igreja e que praticam, e às vezes mais do que os outros. Vamos negar um sacramental a quem pede?

Na minha diocese um dos sacramentais mais importantes é a benção da água. Começo sempre as missas solenes com o asperge. 

E quem pode dar a benção? O catequista pode dar a benção num sacramental, ou dar uma benção a uma pessoa que está a morrer, porque o padre não pode estar lá. 

No sínodo deste ano vamos procurar dar um sentido justo a estes sacramentais. 

A diocese financia todo este encontro. As pessoas ficam no centro da diocese. Nós temos um centro de formação de catequistas. Temos muitas associações, muitos grupos de igreja, milhares de crianças. Somente para a formação dos formadores, são centenas. É preciso ter lugares próprios para isso.

Reune-se todos os padres, irmãs, todos os representantes de cada movimento, e os representantes de casa distrito: um homem, uma mulher e um jovem. Isto junta muita gente. 

O tema é estudado pelos padres antes de ser discutido. 

O ano passado foi sobre o sacramento da unção dos doentes e os funerais. Qual é a ação da Igreja nos funerais dos católicos? Como vamos fazer, pois cada tribo tem os seus costumes. Tivemos que estudar para saber o que faz cada tribo, às vezes coisas completamente diferentes. Na minha diocese há seis tribos.

“O Papa ao envolver a Igreja para o Sínodo, está a alertar-nos para um trabalho em comum. Depois desta pandemia, onde cada um estava para o seu lado, vem calhar bem”

Como vê a importância destes sínodos anuais na pastoral da diocese? 

D. Alfredo Caires – Nós não os chamamos de encontros sinodais. Dou o nome de conselho pastoral, aberto a toda a comunidade, alargado. Também não tenho conselho presbiteral, pois todas as reuniões que se faz, somos 40 padres, incluímos todos os padres. Todos os meses, temos um encontro de três dias juntos. Os padres diocesanos ficam na casa do bispo, os padres religiosos têm as suas casas lá perto. 

Estes encontros são muito importantes para dar unidade à diocese. O primeiro domingo de julho é o dia da diocese. Normalmente fazemos o conselho pastoral na semana anterior para terminar com o dia da diocese. É um marco importante, em que é comunicado a toda a comunidade qual é a ideia central do sínodo, do conselho pastoral. Este ano, já enviei uma carta, antes do Natal, para ser lida em todas as comunidades, com os pontos importantes do sínodo anterior. É uma carta simples. 

Como resolvem as questões de teologia que surgem nos sínodos?

D. Alfredo Caires – Temos alguns teólogos que ajudam e dão apoio. Antes do encontro há o estudo. E por exemplo, sobre os sacramentais, vamos trabalhar com aqueles que todos podem dar. Vemos como o Papa institui os ministérios. Estamos mais adiantados. Não fazemos discussão. Já trabalhamos com os ministros. A comunidade designa alguém para realizar esse ministério, seja para visitar os doentes, preparar os funerais. Como é que o missionário pode ir a sessenta igrejas, a sessenta comunidades? Uma vez por ano, duas vezes, as mais importantes talvez três vezes. 

Também temos a rádio da diocese que transmitem diretamente os encontros. Há um eco. Quando passo pelas comunidade as pessoas dizem que ouviram. 

Como se mantêm as comunidades com a ausência dos padres?

Elas mantêm-se porque elas vivem uma dinâmica de vivência do domingo. Entre as 8:30 e as 9 horas, toda a gente está em oração. Estamos em sintonia e os seus representantes vêm abastecer-se com formação no centro. Todas as missões têm formações e reuniões para fazer o programa no centro. Cada distrito sabe o programa do seu distrito. Como há muitos encontros de jovens, crianças, adultos… muita gente vem ao centro. Portanto há uma certa ligação. Quando se diz que há missa uma vez só, lá nessa igreja, é preciso saber que as pessoas estão em ligação. Mesmo que seja longe vêm. Por exemplo as primeiras sextas-feiras do mês, vem muita gente de longe, para se confessar, para a adoração. Há essa dinâmica. 

O Papa Francisco abriu a sinodalidade à Igreja de todo o mundo, como vê isso? 

D. Alfredo Caires – Eu vejo que é bom. Mas acho que os textos que sairam para a preparação do sínodo, são muito difíceis. São “indigestos” para onde eu estou. Não conseguimos traduzir. O secretário da conferência episcopal, durante um mês, esteve a trabalhar no texto. Uma semana antes da abertura do sínodo, comunicou que o logótipo vai sair, para pôr na porta da Igreja. Façam o possível. Eu fiz a oração do Sínodo. Está aberto.

Lançamos o questionário reestudado. Eu pedi para não fazerem mais de três ou quatro perguntas.

O Papa ao envolver a Igreja para o Sínodo, está a alertar-nos para um trabalho em comum. Depois desta pandemia, onde cada um estava para o seu lado, vem calhar bem. Em si é quase como um curso de “leadership”, a ensinar-nos como fazer uma reunião, dar a voz a todo o mundo. 

Foto: Jornal da Madeira

Na linha da Fratelli Tutti, como é que a Igreja em Madagáscar se posiciona no meio das diferenças a nível cultural, religioso

D. Alfredo Caires – Temos uma certa facilidade. Temos um espírito aberto. Não colocamos as pessoas em caixas. Não dizemos, “és protestante, não vens”, mas estarmos abertos a todos. É uma facilidade de abertura e de diálogo com eles, e cada um no seu lugar. Com respeito. 

Temos uma grande experiência, uma organização que reune as quatro grandes igrejas. 

Na minha diocese, desenvolveu-se bastante o ensino, mesmo no mato, com muitas escolas que se abriram. Os pais mantêm as escolas com as suas poucas economias.

Como se ultrapassam as diferenças culturais? 

D. Alfredo Caires – As diferenças culturais eu vejo mais nas assimetrias culturais e nos rendimentos das pessoas. Os do alto planalto tem mais rendimentos, os da costa passam mais dificuldades, vivem da colheita. No alto planalto tem muitas vocações, mais de 100 seminaristas maiores, nós só temos 7. E mesmo padres, temos 18 padres diocesanos, eles têm quase 300. Têm uma forma de viver diferente. É muito complicado. 

Qual é o projeto para este ano? 

D. Alfredo Caires – Agora o grande projeto é a reconstrução das missões. Vamos fazer um ano zero para a recuperação, ver as missões que precisam de ter um tratamento mais próximo, atentos. É preciso ver que os distritos onde estão os padres diocesanos, os bispos é que têm de se interessar com eles. Procurar fundos e ajudá-los, desde a casa, desde as igrejas. Não têm meios, nem lugar onde encontrá-los. Por exemplo, uma comunidade nova, precisa de ter uma cabana para rezar para que o padre possa visitá-los. Numa casa particular não dá. Tem que haver um espaço próprio, uma fidelidade aquele lugar, mesmo que seja uma cabana. A cabana, sem dúvida, vai ser levada pelo vento. Será preciso construir uma segunda. Talvez na terceira ou na quarta é que vamos procurar fundos para meter zinco e construir uma coisa mais sólida. É gradual, pode demorar vários anos.