Pe. Fernando Soares: Ex-capelão do Centro Hospitalar de São João diz que assistência espiritual é um direito do doente e um dever da Igreja

Foto: Duarte Gomes

Chama-se Fernando Soares, é missionário da Congregação da Missão, mais conhecidos, em Portugal, por Padres Vicentinos. Durante quase oito anos foi capelão do Hospital de São João, no Porto. Uma unidade com 1000 camas, onde nos primeiros tempos é preciso “fazer o reconhecimento geográfico”, para não se perder nos corredores, mas onde depois se conseguem estabelecer percursos e prestar o acompanhamento espiritual aos doentes.

De resto, o sacerdote, natural de Felgueiras, Diocese do Porto, lembra que “a pastoral hospitalar, e a assistência espiritual, não é só um direito doente, imprescindível, inalienável, mas um dever da Igreja”. 

Na Diocese do Funchal por vontade de Deus, manifesta nos seus superiores, o Pe. Fernando, faz a assistência Espiritual da Fundação Princesa Dona Maria Amélia e colabora com a paróquia da Sé nas diversas celebrações. 

Curiosamente, celebra o seu 45º aniversário natalício, precisamente neste Dia Mundial do Doente, pelo que aproveitamos para o parabenizar e para desejar que, também por aqui, possa concretizar de forma profícua a sua missão que, como nos disse, pode passar de novo pela assistência espiritual num hospital.

“eu continuo a dizer, que a presença é o primeiro “sacramento” que um assistente espiritual … leva ao doente”.

 

O Pe. Fernando foi capelão do Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto, durante oito anos, quando e como chegou ali e como foi essa experiência?

Pe. Fernando – A experiência surgiu primeiro por sensibilidade pessoal. A experiência pessoal de internamento e doença grave criou maior sensibilidade e gosto por esta área pastoral. Assim, no ano em que fui ordenado diácono, em 2001, como a casa da nossa comunidade era muito próxima do centro hospitalar São João, ofereci-me como voluntário para acompanhar o capelão que lá estava e que eu conhecia – o Pe. José Nuno. Depois de ser ordenado diácono continuei ainda a título de voluntário. Depois da ordenação presbiteral, em sete de julho de 2002, o Pe. José Nuno colocou-me a possibilidade de reforçar a equipa com mais um padre, um assistente espiritual e, depois do diálogo com os responsáveis da congregação, acabei por aceitar. 

Estamos a falar de um hospital com mais de 1000 camas. Há um colega seu que passou por esta capelania que dizia que nos primeiros tempos se perdia nos corredores. 

Pe. Fernando – É verdade. Nos primeiros tempos, ainda como assistente espiritual a título voluntário ia muito orientado pelos outros voluntários. De facto, nos primeiros tempos, era preciso fazer um bom reconhecimento geográfico do espaço porque só a percorrer corredores já se fazia um excelente exercício físico. 

Como eram as rotinas?

Pe. Fernando – Mais do que rotinas nós tínhamos definidos percursos. Normalmente, acolhíamos e atendíamos aqueles casos que já estavam sinalizados pelos voluntários leigos e os que tínhamos conhecimento na plataforma de internamento. Nós tínhamos acesso a essa plataforma onde, logo no dia a seguir ao internamento, os doentes já constavam. Começávamos por fazer então aquilo a que nós, na organização pastoral do Serviço Religioso chamávamos a Pastoral da Presença, que não era feita nem pelo capelão nem pelo assistente espiritual, mas por voluntários da capelania. Eram eles que faziam o acolhimento e depois conforme as necessidades do mesmo, nos sinalizavam ora para acompanhamento, ora para a sacramentação. Portanto, cada doente tinha as suas necessidades e nós procurávamos atendê-las.

Os profissionais de saúde certamente que também vos ajudavam nessa tarefa de sinalização?

Pe. Fernando – Sim. Sempre houve uma excelente relação e uma profunda colaboração. Quando pensamos em profissionais de saúde, pensamos naqueles que estão na relação mais direta com o doente, nomeadamente os enfermeiros, havia sempre um contacto. Antes de nos aproximarmos de qualquer doente era sempre solicitado ou pelo menos informado o enfermeiro ou enfermeira que estivesse de serviço de que tínhamos indicação deste ou daquele doente e/ou da sua família, e só depois é que nos aproximávamos dele.

 

Ao longo do tempo certamente conheceu muitos doentes e muitas histórias umas com final feliz outras nem tanto. Quais as que mais o marcaram?

Pe. Fernando – Bem, para responder a esta pergunta, tenho de fazer, também eu uma pergunta: o que é um final feliz? As pessoas que chegam ao hospital é, evidentemente, por uma situação de doença, de sofrimento, de fragilidade. O hospital pode não ter o “poder” de curar, mas todas as pessoas precisam, necessitam e podem ser cuidadas. E era isso, acima de tudo, que procurávamos promover. Não era curar, porque isso, pode não estar ao nosso (dos profissionais) alcance, mas era cuidar! E isso, permita que lhe diga, está ao alcance de todos!

Aliás, um final feliz pode ser de alguém que parte em paz…

Pe. Fernando – É verdade. As histórias mais felizes, mais emocionantes, aquelas que mais nos tocam são as que nós acompanhamos e que percebemos que a pessoa conseguiu dar unidade, plenitude; aquilo que nós dizemos: encontrou um sentido para a sua vida. Agora, claro, há histórias de dor, de muito sofrimento, e também muitas histórias de reabilitação. As tais histórias, que a maioria de nós define como felizes. Histórias de pessoas que fomos acompanhando e que vemos sair do hospital recuperadas física e espiritualmente. 

“Jesus olha à pessoa… e a Igreja, se quiser ser fiel aos seus fundamentos, também tem de olhar à pessoa toda, mais do que à sua doença”.

Deve ter encontrado muita gente revoltada com Deus e a se questionar o porquê do seu sofrimento se Deus é infinitamente bom? Como se faz a abordagem a estes doentes?

Pe. Fernando – Essas são, de facto, as perguntas que é normal as pessoas colocarem: porquê, o que é que eu fiz para merecer? Ainda há muito essa concessão retributiva na relação com Deus. Achamos que Ele permeia os virtuosos, dando saúde e castiga os pecadores com doenças. Ainda estamos muito, eu diria, enredados, aprisionados nessa relação, nessa imagem de Deus. É preciso, por isso, apresentar-lhes o verdadeiro rosto de Deus que é o Pai da Misericórdia, como a mensagem do Papa para este ano sublinha: «sede misericordiosos como o Pai do céu é misericordioso». E Jesus é exatamente o primeiro rosto dessa misericórdia: Deus olha, escuta, ouve todos esses apelos e é assim, desta forma, que o próprio Jesus se aproxima. Quando pensamos na atenção e no cuidado ao doente devemos ter sempre presente a parábola do Bom Samaritano, que define verdadeiramente o espírito do cuidado em saúde: ver, aproximar, tocar, trazer consigo e levar à estalagem. Todo um conjunto de ações; estes são os verbos que devem mobilizar a forma de estar com o doente: ver e escutar. Quando me pergunta como é que eu fazia com essas pessoas, mais do que fazer é ser, ser uma orelha. No brasil as cabines públicas de telefone eram chamadas de orelhão. O assistente espiritual, aquele que cuida da dessa dimensão espiritual num hospital ou numa instituição similar também tem de ser um orelhão. Tem de ser aquele que se aproxima para escutar, para escutar exatamente essas perguntas, sabendo que não vai lá levar respostas fechadas. 

Muitas vezes essas respostas acabam por ser encontradas pelas próprias pessoas?

Pe. Fernando – Sim, a resposta está na própria pessoa. Ela é que a vai encontrar. É natural que haja uma revolta, que haja uma busca do sentido daquela circunstância ou daquela situação, mas nós não temos de ir lá em defesa de Deus, porque Deus não precisa que o defendam. Nós precisamos é de ir lá, nos apresentar e olhar a pessoa e saber escutar, primeiro os seus anseios e as suas angústias e, como o bom samaritano, ouvir esse apelo; perceber quais são as suas preocupações e dizer que estou aqui para te carregar, para ser suporte, para ser apoio; e levar esta dimensão e este rosto misericordioso do Pai que é Jesus; e mostrar que O podemos acolher na nossa vida, nas nossas instituições, para que elas sejam também, verdadeiramente, um rosto de misericórdia”.

Na sua mensagem o Papa diz precisamente que «o doente é sempre mais importante do que a sua doença». É uma forma de voltar a chamar a atenção para a importância e para a valorização da vida do princípio ao fim…

Pe. Fernando – Sim. Aliás, nesta mensagem ele faz a invocação destes 30 anos da celebração do Dia Mundial do Doente, exatamente para uma maior sensibilização para o cuidado da pessoa; o cuidado com a dignidade da pessoa humana; e a sensibilização para maior atenção à pessoa e não à doença. Porque nós podemos cair nesta “armadilha”, nomeadamente os técnicos e os profissionais de saúde, e até os voluntários: centrarmo-nos na doença e afunilar o nosso olhar sobre a pessoa. Jesus olha à pessoa… e a Igreja, se quiser ser fiel aos seus fundamentos, também tem de olhar à pessoa toda, mais do que à sua doença.

Não sei se ainda apanhou estes tempos de pandemia que tornaram ainda mais complicada a missão de chegar aos doentes, de os escutar…

Pe. Fernando – Não. Já não apanhei. 

Mas de qualquer forma, certamente que foi sabendo das dificuldades…

Pe. Fernando – Sim. Fui acompanhando a situação com muitos colegas e percebi que ao início, ninguém sabia muito bem como tratar, como fazer, o que fazer. Ao início eles ficaram impedidos mesmo de entrar nos hospitais, só o faziam em situações limite. Mas depois, de acordo com as conversas que fui tendo com os colegas, os responsáveis hospitalares, foram percebendo que era importante também a presença do assistente espiritual no hospital e eles voltaram a entrar. E segundo me dizem, numa primeira fase, foi também muito importante o acompanhamento aos profissionais. Eles estavam exaustos, um bocadinho, como se costuma dizer, atarantados com toda esta situação nova. E, claro está, depois voltou a ser crucial chegar aos doentes e suas famílias. 

“Para mim a pastoral hospitalar, e a assistência espiritual, não é só um direito, mas é muito mais do que isso. Primeiro é um direito do doente, imprescindível, inalienável e é um dever da Igreja”.

Esta doença trouxe muito isolamento, mais ainda para quem estava na cama de um hospital, sem a possibilidade de receber visitas…

Pe. Fernando – É verdade. Esta doença impôs barreiras àquilo que é essencial que é esta manifestação de proximidade, que muitas vezes e em muitas circunstâncias foi quebrada de forma digital. Foi uma forma possível das pessoas sentirem que não estavam sós; que tinham alguém que se preocupava com elas, que atendia aos seus anseios e angústias. 

Pode-se dizer que esta situação veio mostrar e reforçar a importância da Pastoral Hospitalar para quem está internado?

Pe. Fernando – Para mim a pastoral hospitalar, e a assistência espiritual, não é só um direito, mas é muito mais do que isso. Primeiro é um direito do doente, imprescindível, inalienável e é um dever da Igreja. De resto, no Centro Hospitalar de São João, mais do que a capelania havia o serviço religioso. Com um diretor de serviço e toda uma alargada organização, dentro do mesmo. No serviço religioso a pastoral estava dividida em vários sectores: nomeadamente a pastoral de presença; a pastoral sacramental; a pastoral dominical e a pastoral universitária. A pastoral de presença era feita essencialmente por leigos, que com a muita formação que lhes foi dada pelos assistentes espirituais, lhes permitiu adquirir competências para esse tipo de pastoral. Dizíamos, e eu continuo a dizer, que a presença é o primeiro “sacramento” que um assistente espiritual, seja ele voluntário, religioso ou padre, leva ao doente. O seu rosto, a sua presença, a forma como se apresenta, saúda, aborda é o primeiro sacramento. De forma a que, quando o doente percebe que somos de uma confissão religiosa, possa dizer: este vem como instrumento da ação de Deus. Depois tínhamos a pastoral sacramental, com a comunhão dominical e diária, a confissão e a unção, que muitos doentes, depois de algum acompanhamento, solicitavam e chegavam a essa experiência de reconciliação consigo, com os outros e essas sim, são experiências lindíssimas. Ao domingo, tínhamos uma pastoral própria, que passava por irmos às enfermarias perguntar aos doentes que tinham condições se queriam participar na Eucaristia. Havia sempre um voluntário que acompanhava aqueles que manifestavam esse desejo, que participava com ele na Eucaristia e que no final o acompanhava de novo à enfermaria. Tudo isto pressupôs formação desses voluntários, a criação de redes de voluntariado com os escuteiros, e muitos outros grupos juvenis; com coros das paróquias mais próximas do hospital. Foi uma experiência fenomenal. Aliás, o serviço religioso do Centro Hospitalar do São João foi um bocadinho pioneiro nessa rede de voluntariado que, espero o mais breve possível vá sendo retomada, evidentemente, conforme a pandemia for deixando. E havia ainda pastoral universitária. O São João é um Hospital Universitário, por isso, não podíamos deixar de fora aqueles jovens. Felizmente, com algumas atividades e boa relação com as associações académicas, conseguiu-se criar um excelente espaço de comunicação com um bom grupo de jovens oriundos de todas as regiões do país… 

Portanto, esta foi uma experiência muito positiva para si?

Pe. Fernando – Mais do que positiva. Foi aí que eu, mais concretamente, vi realizada a minha vocação missionária: à maneira de São Vicente de Paulo, que passa por contemplar o rosto dos pobres, dos doentes e dos mais frágeis… e ver o rosto de Cristo.