1. Oito dias depois da Solenidade do Natal do Senhor, que a liturgia oriental designa significativamente por «a Páscoa do Natal», eis-nos no Primeiro Dia do Ano Civil de 2021, tradicionalmente designado como Dia de «Ano Bom», a celebrar a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus.
2. A figura que enche este Dia, e que motiva a nossa Alegria, é, portanto, a figura de Maria, na sua fisionomia mais alta, a de Mãe de Deus, como foi solenemente proclamada no Concílio de Éfeso, em 431, mas já assim luminosamente desenhada nas páginas do Novo Testamento.
3. É assim que a encontramos no Lecionário de hoje. Desde logo naquela menção sóbria, e ousamos mesmo dizer pobre, com que Paulo se refere à Mãe de Jesus, escrevendo aos Gálatas: «Deus mandou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei» (Gálatas 4,4). Nesta linha breve e densa aparece compendiado o mistério da Incarnação, ao mesmo tempo que se sente já pulsar o coração da Mariologia: Maria não é grande em si mesma; é, na verdade, uma «mulher», verdadeiramente nossa irmã na sua condição de humana criatura. Não é grande em si mesma, mas é grande por ser a Mãe do Filho de Deus, e é aqui que ela nos ultrapassa, imaculada por graça, bem-aventurada, nossa mãe na fé e na esperança. Maria não é grande em si mesma; vem-lhe de Deus essa grandeza.
4. O Evangelho deste Dia de Maria (Lucas 2,16-21) guarda também uma preciosidade, quando Lucas nos diz que «todos os que tinham escutado as coisas faladas pelos pastores ficaram maravilhados, mas Maria GUARDAVA (synetêrei) todas estas Palavras que aconteceram (tà rhêmata), COMPONDO-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,18-19). Em contraponto com o espanto de todos os que ouviram as palavras dos pastores, Lucas pinta um quadro mariano de extraordinária beleza: «Maria, ao contrário, GUARDAVA todas estas Palavras que aconteceram, COMPONDO-as no seu coração». Há o espanto e a maravilha que se exprimem no louvor e no canto, e há o espanto e a maravilha que se exprimem no silêncio e na escuta qualificada e comovida. Maria, a Senhora deste Dia, aparece a GUARDAR com enlevado carinho todas estas Palavras que acontecem, todos estes acontecimentos que falam e não esquecem. O verbo GUARDAR implica uma atenção extremada e carinhosa, como quem leva nas suas mãos uma coisa preciosa. Este GUARDAR atencioso e carinhoso não é, porém, o ato de um momento, mas a atitude de uma vida, uma vez que o verbo grego está no imperfeito, que implica duração. O outro verbo belo mostra-nos Maria como que a COMPOR, isto é, a «pôr em conjunto» (symbállô), a simbolizar, a organizar, para melhor compreender e se fazer compreender. É como quem, com aquelas Palavras, COMPÕE um Poema, uma Sinfonia, e se entretém a vida toda a trautear essa melodia e a conjugar novos acordes de alegria.
5. Esta solicitude maternal de Maria, habitada por esta imensa melodia que nos vem de Deus e nos reconcilia, levou o Papa Paulo VI, a associar, desde 1968, à Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a celebração do Dia Mundial da Paz. Basta fazer bem as contas para nos apercebermos que celebramos Hoje o 54.º Dia Mundial da Paz. O Papa Francisco deu à sua mensagem para este dia de Maria o título oportuno e significativo de «A cultura do cuidado como percurso de paz». Com este dizer, o Papa desenha uma vez mais diante de todos os homens e mulheres de boa vontade o cenário do mundo de que somos nós hoje os habitantes, e de que devemos ser também os cuidadores. Os muitos e diversificados grupos de homens e mulheres, nossos irmãos e irmãs, que hoje se movimentam no mundo, fazem-no fugindo de situações de guerra, de fome e de miséria, e vão em busca da paz e de dignidade. Nós sabemos que a justiça é o sabor que vem de Deus, e que a paz não é a paz romana, assente no poder das armas, nem a paz do judaísmo palestinense, assente nos acordos entre as partes. Na verdade, nem reparamos que é um contrassenso combater pela Paz, e quando nos sentamos a fazer acordos de Paz, é porque já antes perdemos a razão. A paz é primeira. É um Dom de Deus para todo o ser humano que vem a este mundo. Portanto, num mundo tantas vezes às avessas, o Papa exorta-nos a promover a cultura do cuidado para erradicar a cultura da indiferença, do descarte e do conflito, sendo que em muitas regiões e comunidades já não se sabe sequer o que é viver em paz e sossego, parecendo mesmo que as guerras e conflitos são o estado normal do mundo.
6. De Deus vem sempre um mundo novo, belo, maravilhoso. Tão novo, belo e maravilhoso, que nos cega, a nós que vamos arrastando os olhos cansados pela lama. Que o nosso Deus faça chegar até nós tempo e modo para ouvir outra vez a extraordinária bênção sacerdotal, que o Livro dos Números guarda na sua forma tripartida: «O Senhor te abençoe e te guarde./ O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável./ O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz» (Números 6,24-26).