Cardeal Tolentino Mendonça: A «pandemia é terra de missão»

Numa conferência sobre «as palavras da missão», arquivista e bibliotecário da Biblioteca Vaticana questionou o «aqui e agora» da Igreja e os caminhos para chegar às periferias físicas e existenciais, tendo o desafio da fraternidade como «escolha ética»

O cardeal José Tolentino Mendonça afirmou que a pandemia é “terra de missão” e que este tempo não pode ser abandonado.

“Não podemos abandonar a pandemia mas devemos tornar a pandemia terra de missão. O aqui e o agora são sempre os lugares onde Deus fala”, disse o arquivista e bibliotecário da Biblioteca Vaticana, na conferencia promovida pelos Institutos Missionários Ad Gentes, no âmbito de um ciclo intitulado «A falta que um rosto faz…»

Em torno das mensagens do Papa Francisco, e “num diálogo com as encíclicas” «A Alegria do Evangelho» e a mais recente «Fratelli Tutti», o cardeal português falou na importância da gratidão, “olhando para os que vivem intensamente com criatividade e compromisso a sua vocação missionária” e “conversão”.

“Há uma conversão missionária em curso na Igreja. A Igreja hoje não pode falhar o encontro com a missão, não pode não ouvir o chamamento de ser uma Igreja em saída, um chamamento que a projeto para lá de si”, lembra.

E, adverte, o contexto não é indiferente: “Vivermos o mês missionário neste contexto específico. Para dizer «eis-me aqui», tenho de saber o meu aqui e o meu agora. E este aqui e agora não é indissociável do que a pandemia tem trazido ao mundo e às comunidades”.

Hoje, acredita o cardeal português, o mundo lança uma interpelação.

“A pandemia desabou sobre nós mas nestes meses podemos já perceber tanto: vivíamos num mundo de falsas seguranças, a esconder a nossa vulnerabilidade, vivíamos a negar a realidade. Mas percebemos que a tragédia global põe a descoberto valores positivos. A «Fratelli Tutti» é o que é por causa da pandemia. A mensagem de fraternidade tornou-se urgente. Não podemos não viver a fraternidade, não podemos não viver como irmãos”.

O cardeal Tolentino desafiou a um trabalho “orgânico”, a ultrapassar o “viver por conta própria”, e incidiu que a expressão do Papa Francisco, ao afirmar em março, na Praça de São Pedro que «estamos todos no mesmo barco», se trata de “um desafio para dentro da Igreja”.

“Estamos frágeis e desorientados mas podemos descobrir a possibilidade de remarmos juntos e nos encorajar mutuamente. Não podemos viver por conta própria, os desafios da história só os podemos viver juntos. Perceber que estamos todos do mesmo barco é um desafio para dentro da Igreja. Tantas vezes andamos em barquinhos, outros em barcaças, em jangadas e não temos consciência de que estamos de facto no mesmo barco e a remar para o mesmo lado. É um desafio para a conversão missionária e para o mundo”, sublinhou.

Considerando que a vida missionária é feita de testemunhos, “de encarar rostos”, o cardeal Tolentino propõe mudar o termo «leigo» para «testemunha», passando a “falar da Igreja como um povo de testemunhas”.

“A vida missionária percebemo-la se entendemos que ela é um chamamento a manifestar o nosso testemunho, o que vimos, ouvimos, experimentamos acerca de Cristo, vivemos e podemos falar sobre isso”, indicou.

D. José Tolentino Mendonça recordou o trabalho do filósofo Emmanuel Levinas, que incidia na importância do rosto, para afirmar que reconhecer um rosto é um ato de responsabilidade.

“Cada rosto é uma súplica, questionando a minha presença e responsabilidade. Cada ser humano traz no rosto a sua pobreza essencial, a pele do rosto é a mais nua, a mais despida, o rosto é a nossa pobreza”, afirmou lembrando também que é o olhar o rosto que nos faz estabelecer ligação e nos impede de fazer mal ao outro.

“Ver um rosto é assumir uma responsabilidade”, sublinhou.

“Sermos irmãos é uma escolha ética, é a primeira escolha da missão. A fraternidade não é uma imposição, mas é uma escolha”, indicou.

Para conduzir a Igreja aos locais da periferia física e existencial, D. José Tolentino Mendonça desafia a habitar as perguntas e a não ter pressa nas respostas, por mais que o tempo de questionamento seja incómodo.

“Este contexto prepara-nos para o mundo que aí vem. Estamos dispostos a ser pessoas que fazem perguntas e levam os outros a perguntar?” questionou.

O ciclo de conferências desenvolvida pelos IMAG, com o tema «A falta que um rosto faz…» vai contar com um encontro extra, marcado para o dia 5 de novembro, às 21h, com o objetivo de “colocar os rostos em frente uns dos outros, em partilha missionária, dando o seu contributo para a reflexão”.