Domingo XX do Tempo Comum: Mulher da grande fé!

D.R.

1. O Evangelho deste Domingo XX do Tempo Comum serve-nos uma página absolutamente desarmante, retirada de Mateus 15,21-28. Desarmante e insólita, pois quando se trata de curar doentes, não é normal que Jesus se faça rogado tanto tempo. A norma é curá-los imediatamente. Mas aqui, é só à quarta tentativa (outra vez o esquema 3 + 1), três tentativas da mulher e uma dos discípulos, que Jesus se decide a curar a filha desta mulher e mãe libanesa. O extraordinário episódio acontece quando Jesus abandona Genesaré, na costa ocidental do Mar da Galileia, e vai para a região de Tiro e de Sídon, atual Líbano, terra pagã. Na maneira de ver do Antigo Testamento, a região de Tiro e de Sídon, a noroeste da Galileia, sobre a costa do Mediterrânio, era uma terra tipicamente pagã.

2. Uma mulher e mãe «libanesa», carregada com o drama da sua filha doente, situação verdadeira ontem como hoje, talvez ainda mais hoje após o drama da recente explosão no porto de Beirute, e que podemos ainda estender à Palestina, à Síria, ao Iraque e a tantos outros lugares do Médio Oriente, vem implorar de Jesus, num grito que lhe sai do fundo das entranhas, que lhe «faça graça» (eléêsón me, kýrie) (Mateus 15,22), isto é, que olhe para ela com bondade e ternura, como ela bem sabia, pois «fazer graça» é coisa de mãe que dirige o seu olhar embevecido para o bebé que embala nos seus braços.

3. A este primeiro pedido da mulher, refere o texto que Jesus nem lhe respondeu (cf. Mateus 15,23). Mas a mulher não desiste, mas insiste e persiste, e continua a gritar, a gritar, a gritar, de tal modo que agora são os discípulos que pedem (segundo pedido) a Jesus que a despache, «porque ela vem a gritar atrás de nós» (ópisthen hêmôn), dizem eles (Mateus 15,23b). Equívoco deles e nosso. Não é verdade que aquela mulher e mãe «libanesa» venha a gritar atrás deles ou de nós, para eles ou para nós. Está bom de ver que ela grita atrás de Jesus, para Jesus! E leva a sua insistência ainda mais longe, prostrando-se (verbo proskinéô) agora diante de Jesus, e formulando o seu segundo pedido (terceiro do relato): «Senhor, salva-me!» (Mateus 15,25). O gesto da prostração significa orientar a sua vida toda para Jesus, pôr-se totalmente na dependência de Jesus. A reação de Jesus é de uma dureza extrema: afasta a pobre mulher e mãe duramente, dizendo-lhe: «Não está bem (kalón) que se tome o pão dos filhos, para o lançar aos cachorrinhos» (Mateus 15,26), catalogando assim aquela pobre mulher e mãe «libanesa» na classe dos cachorros [= pagãos] e não dos filhos [= judeus] (Mateus 15,26). Só para estes é que ele veio.

4. Mas a mulher replica de modo admirável! É a sua terceira intervenção, que carrega o quarto pedido do relato. A resposta daquela mulher e mãe é de tal modo cortante, que deve ser traduzida à letra, para não se perder a sua força. Ela responde: «Mas sim, Senhor (naí kýrie)! É verdade que também os cachorrinhos se alimentam das migalhas que caem da mesa dos seus donos!» (Mateus 15,27). Face a esta tempestade de humildade e de ternura, Jesus replicou: «Ó Mulher, grande é a tua fé!» (ô gýnai, megálê sou hê pístis), e acrescentou: «faça-se como queres!» (Mateus 15,28).

5. Note-se bem que é a única vez que Jesus fala de «grande fé». E atribui-a a uma mulher e mãe «libanesa» cujo amor nunca se vergou perante a dureza e as dificuldades da vida. Em contraponto com esta mulher da «grande fé», note-se bem que Pedro é o homem da «pequena fé» (oligópistos), como vimos no episódio do Domingo passado (cf. Mateus 14,31), do mesmo modo que os discípulos são também os homens «da pequena fé» (oligópistoi) (cf. Mateus 6,30; 8,26; 16,8; 17,20). Admirável ainda que Jesus diga a esta mulher que não desiste, mas insiste e persiste: «faça-se como queres» (genêthêtô hôs théleis), um paralelo claro da oração do «Pai Nosso»: «Faça-se a tua vontade» (genêthêtô tò thélêmá sou) (Mateus 6,10)!

6. O episódio é de uma crueza e de uma beleza inauditas. Mas há ainda mais: é a insistência desta mulher e mãe «libanesa» que, por assim dizer, obriga Jesus a passar mais uma fronteira: de hebraeos ad gentes, dos hebreus para os pagãos! Mas fica também às claras o desmascaramento do ridículo das nossas atitudes falsamente endeusadas, de nós, que nos dizemos discípulos de Jesus, e que às vezes somos levados a pensar que as pessoas vêm «atrás de nós», que temos especiais poderes, e que até podemos conseguir especiais favores! Na verdade, discípula de Jesus é a pobre mulher do Evangelho de hoje, que vai «atrás de Jesus», que «se prostra diante dele», que grita para Ele, e que mostra uma fé inquebrantável!

7. Enquanto tentamos compreender melhor a ousadia da grande fé desta mulher e mãe «libanesa», que enche claramente este Domingo XX, não deixemos também de contemplar o rumor missionário que se faz ouvir, em perfeita sintonia, nas demais passagens ou paisagens bíblicas de hoje. Em primeiro lugar, e em pura sintonia com a universalidade do Evangelho, aí está a lição igualmente aberta de Isaías 56,1-7, que adscreve mais um belo nome a Jerusalém: «Casa de oração para todos os povos» (Isaías 56,7). Jesus citará este texto de Isaías em Mateus 21,13, Marcos 11,17 e Lucas 19,46. Em Mateus e Lucas, só a primeira parte é referida: «A minha casa será chamada casa de oração». Só em Marcos, a citação aparece por inteiro: «A minha casa será chamada casa de oração para todos os povos». Mas Isaías continua a anunciar que os estrangeiros que quiserem servir e amar o Deus santo e ser fiéis à sua aliança, serão por Ele conduzidos ao monte santo, e os seus sacrifícios e holocaustos serão do agrado de Deus (Isaías 56,6-7). Alguns desses estrangeiros serão mesmo escolhidos por Deus para sacerdotes e levitas (Isaías 66,21).

8. Mas este tom de comovida universalidade já se tinha feito ouvir, de forma surpreendente, em Isaías 19,24-25, em que Deus une na mesma bênção o Egito, a Assíria e Israel, sendo o Egito e a Assíria inimigos de Israel. Soa assim o requintado dizer de Deus: «Bendito o Egito, meu povo, a Assíria, obra das minhas mãos, e Israel, minha herança». O amor de Deus não conhece barreiras. A mesma admirável lição se encontra no Salmo 87,4, um maravilhoso Cântico de Sião: «Recordarei Raab e Babel entre os que me conhecem; eis a Filisteia e Tiro e a Etiópia: este nasceu lá». Eis Deus a escrever no livro anagráfico os nomes dos seus filhos. E aí vemos outra vez inscritos os inimigos de Israel: Raab, que é o Egito (Isaías 30,7), a Babilónia, os Filisteus, e os estrangeiros mais estrangeiros, a Etiópia (do grego aíthô [= acender, queimar], e ôps [= rosto]), que é país das pessoas de rosto queimado ou de cor negra, o país do fim do mundo, como escreve Homero, no princípio do Canto I da Odisseia.

9. Vai ainda no sentido da universalidade a lição de hoje da Carta aos Romanos 11,13-15.29-32. São Paulo intitula-se aí «Apóstolo das nações» (v. 13), e diz-nos que Deus usa de misericórdia para com todos (v. 32). É, porém, um facto que o Israel qualificado, entenda-se, a minoria mais fiel e religiosa, não aceitou a visita de Deus mediante o Filho. Foi por esta razão que Paulo foi enviado aos pagãos. Mas os israelitas continuam a ser «amados» (agapêtoí) de Deus (v. 28), e são-no para sempre, tal como o Filho Único é «amado» (agapêtós), pois a Vontade de Deus não muda.

10. Por isso, bem podemos hoje, com o Salmo 67, juntar as nossas vozes às vozes dos povos de toda a terra no mesmo louvor ao Deus que a todos faz graça e misericórdia. O Salmo 67 é uma oração de bênção em forma de petição. Em termos técnicos, equivale a uma epiclese: não «eu te bendigo», mas «Deus nos bendiga». O nosso Salmo 67 recolhe os temas da bênção sacerdotal de Números 6,24-26, como a graça, a luz, a benevolência, a paz, pondo o plural onde estava o singular, por assim dizer, «democratizando» a bênção, agora dirigida a todos, onde, na bênção sacerdotal do Livro dos Números, se dirigia apenas a Israel.