Acabo de receber um artigo da revista Forum Canonicum, do Instituto Superior de Direito Canónico da Universidade Católica de Lisboa, realizado pelos padres canonistas João Vergamota, Ricardo Ferreira, João Bizarro e Paulo Pires. Achei por bem, até para o meu estudo, escrever esta síntese que aproveito para partilhar convosco. É, pois, uma síntese do que está no artigo, simplificando as expressões para o entendimento geral das pessoas.
Muitas foram as vozes e as opiniões contra a existência do Direito Canónico e do Direito Penal na vida da Igreja. Hoje percebemos que, mais do que nunca, precisamos do Direito para que a justiça e a caridade brilhem no seio da nossa comunidade eclesial. A Igreja tem estado cada vez mais atenta de forma a auxiliar e proteger as vítimas, e a prevenir com mais empenho a repetição dos abusos sexuais no seu interior, pelos seus próprios membros e a ser para a sociedade, uma vez que o problema é transversal, um exemplo de como enfrentar com coragem este crime hediondo. Não podemos suportar na Igreja abusos e abusadores, afirmava D. José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa. Não podemos permitir mais vítimas, nem mais encobrimento. Não podemos permitir que o pecado de uns suje e manche a beleza da nossa Igreja e a sua missão. Percebemos muito bem que a Igreja não tem poupado esforços para erradicar do seu seio este flagelo dos abusos sexuais. Exemplo disso é todo o esforço e todas as medidas emanadas pelos Papas, pela Santa Sé, pelas conferências episcopais em vista à tolerância zero. Aqui no nosso Portugal os nossos bispos são também exemplo disso com a criação da Comissão Independente e o relatório final. Uma iniciativa da Igreja e paga pela própria Igreja. Tratou-se de um gesto de coragem, de manifestação da sua posição, de que não está a brincar quando fala mesmo de tolerância zero. As conclusões deixam-nos tristes e envergonhados, a suportar as pedras que atiram sobre toda a Igreja por causa de uns que não viveram a beleza do Evangelho. Mas é a Igreja, é assim mesmo. Em frente! Corajosa. Sempre em purificação, sempre em conversão. Quer mesmo ser sinal, no meio desta sociedade, que basta de toda a espécie de abuso ou de encobrimento.
Mas vamos ao Direito Canónico.
Estes casos são graves e sérios. Ninguém pode ser condenado pela comunicação social ou na praça pública. Deve haver seriedade, rigor e clareza para que impere a justiça e a verdade. Deve haver cooperação com o Estado na prevenção dos abusos e acompanhamento das vítimas. A lei canónica abrange não apenas o clero, mas todos os que no interior da Igreja exerçam uma função em seu nome.
Diante de uma denúncia devem ser sempre seguidas as prescrições das leis civis, seguindo o princípio da cooperação entre a Igreja e o Estado. Recorde-se que essa cooperação não pode ir contra o sigilo que existe no Sacramento da Reconciliação e nem o Estado pode perguntar aos clérigos aquilo que tenham conhecimento por motivo do seu ministério (Ver Concordata entre Portugal e a Santa Sé). Cabe ao Bispo participar às autoridades civis qualquer notícia de delito sempre que o considere indispensável para tutelar a pessoa ofendida ou o perigo de mais vítimas. A juízo do Bispo pode não haver obrigatoriedade da participação sempre que tenha sido protegida a vítima e não conste a reiterabilidade da conduta delituosa. É sempre necessário respeitar a vontade da vítima, desde que essa vontade não seja contrária a legislação civil vigente.
O Ordinário pode discernir erroneamente e nesse caso quem poderá julgar o Bispo é a Santa Sé e não o poder civil. Cabe à Santa Sé aplicar as medidas canónicas que julgue oportunas.
Não existe obrigatoriedade de denúncia às autoridades civis. Mas existe obrigatoriedade de denúncia às autoridades eclesiásticas. Uma coisa é a obrigatoriedade jurídica e uma outra é a obrigatoriedade moral de denúncia. Cabe ao Bispo receber as denúncias, assim como às Comissões criadas pela iniciativa do Papa Francisco em todas as dioceses. Também na nossa Diocese do Funchal foi criada a 19 de setembro de 2019 a Comissão de acompanhamento de crianças, jovens e pessoas vulneráveis (email: cacjpv.diocesefx@sapo.pt). Cria-se assim um mecanismo permanente de proximidade com o objetivo de receber qualquer denúncia. Não cabe a estas comissões a instrução do processo canónico. O seu âmbito de ação é o aconselhamento, a orientação e a assistência. Caberá ao Bispo iniciar o procedimento canónico no âmbito do ordenamento canónico vigente.
Que fique claro que não existe obrigação de denúncia às autoridades civis, mas existe obrigação de atuação judicial canónica. A obrigação da denúncia de crimes às autoridades competentes está prevista apenas para os crimes públicos, de acordo com o nosso ordenamento jurídico. É importante aconselhar as vítimas e mostrar-lhes os seus direitos no sentido de denunciarem a situação às autoridades quer civis quer eclesiásticas.
Segundo o direito civil todos os bispos e sacerdotes podem ser responsabilizados pela omissão de ação preventiva. Para tal é necessário provar que a omissão de ação foi praticada com dolo.
Os Bispos logo que recebam uma denúncia devem iniciar uma investigação prévia e aplicar as necessárias medidas cautelares para evitar a continuação dos abusos. Deve dar-se conhecimento do caso à Doutrina da Fé que acompanhará o caso e poderá chamar a si o julgamento do mesmo.
A comunicação à Santa Sé deve ser realizada mesmo para os casos prescritos canonicamente (vinte anos após a vítima cumprir 18 anos). Ao contrário da lei civil, o direito canónico prevê a derrogação da prescrição, isto é o seu desaparecimento, para que o caso seja julgado. Em Portugal a lei da prescrição fala dos 23 anos. Já são muitos os que falam em alterar para os 30 anos, dando assim possibilidade às vítimas de denunciar o crime.
No caso da Doutrina da Fé determinar a abertura de um processo, deve dar-se início ao mesmo, quer pela via judicial quer pela via administrativa, o qual concluirá com a aplicação da sentença judicial ou do decreto administrativo. O conteúdo destes decretos pode ser condenatório, absolutório ou demissório. Poderão ou deverão ser participados ao poder civil.
O julgamento de qualquer caso far-se-á sempre no respeito pelo princípio da irretroatividade da lei. Os abusos praticados por um padre com um jovem entre 16 e 18 anos só é punível se foram cometidos após 18 de maio de 2001; os que foram praticados com uma pessoa com uso imperfeito da razão só são puníveis se praticados depois de 21 de maio de 2010.
As normas da Santa Sé visam sempre os delitos cometidos por clérigos ou leigos que sejam membros professos de Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica. Os delitos cometidos por outros leigos são da competência dos Bispos e não necessitam ser enviados ou comunicados à Santa Sé.
Todas as pessoas têm direito à boa fama e como tal não pode haver condenações à partida ou condenações realizadas no calor do momento ou na praça pública ou pior nos meios de comunicação social. A obrigação de denúncia não é o mesmo que divulgação pública da notícia. A própria publicação da notícia pode também ser importante. Caberá ao Bispo discernir sobre o assunto, em vista por um lado a garantir o bom nome das pessoas e por outro a proteção contra abusos e novas vítimas.
Fica claro que a Igreja tem realizado um grande caminho, também ele jurídico, no sentido de dotar a Igreja de todos os instrumentos nesta luta contra os abusos sexuais no seu interior. É este o caminho a seguir na Igreja e na sociedade, criar sociedades sadias e um mundo mais digno e lutar contra os abusos, problema transversal em toda a nossa sociedade.
Deus abençoe todos os que sofrem.
Cónego Marcos Gonçalves