Na Eucaristia de sufrágio por Bento XVI que celebrou no sábado, dia 7 de janeiro, na Catedral do Funchal, D. Nuno Brás sublinhou o facto do Papa Bento XVI “nunca ter voltado as costas ao combate pela verdade”, de ter sido “um pensador que via mais longe” e o seu amor a Jesus, que era para si fundamental pois mostrava-lhe que Deus não é apenas “um soberano omnipotente, um poderoso distante, mas é amor que me ama”, e que, por consequência, deve ser a bússola da vida de cada um de nós.
Na homilia da celebração, o bispo do Funchal, lembrou Bento XVI, falecido a 31 de dezembro de 2022, citando o Livro de diálogos com Peter Seewald, intitulado Conversas Finais, em que este fala precisamente desse amor.
Escreveu então o Papa, citado pelo bispo do Funchal na sua homilia: “Se não experimentamos o amor, não podemos falar dele. Eu experimentei-o primeiramente em casa, vindo do meu pai, da minha mãe e dos meus irmãos. […] Ser amados e restituir o amor aos outros, sempre o considerei fundamental para poder viver, para nos podermos aceitar a nós e aos outros. Finalmente, tornei-me cada vez mais consciente de que o próprio Deus não é apenas, digamos, um soberano omnipotente, um poderoso distante, mas é amor que me ama, e que, por consequência, deve ser a bússola da minha vida. E eu devo deixar-me conduzir por Ele, por esta força que se chama amor (ed. it., pág. 226)”.
Neste “encontro de amor”, vincou, “consiste a fé, consiste todo o ser e toda a vida cristã”. De resto, se virmos bem, “o que seduz em Jesus de Nazaré é precisamente o encontro surpreendente com o amor de Deus — encontro que transforma os corações daqueles a quem o Senhor se manifesta. Neste encontro se resume, de facto, toda a revelação cristã”, frisou.
Mais adiante na sua reflexão, D. Nuno Brás, lembrou o lema episcopal de Bento XVI, “cooperador da Verdade”.
A este propósito, no já referido diálogo com Peter Seewald, esclarecia o Papa emérito citado pelo prelado: “Não podemos dizer: ‘Eu possuo a verdade’, mas que a verdade nos possui, nos tocou. Uma vez que a verdade é pessoa, com ela podemos colaborar. Por ela podemos empenharmos, procurando fazê-la prevalecer” (p. 225)”.
Daí o apelo para que nos “deixemos, também nós, surpreender pela abundância do amor divino que vem ao nosso encontro. Deixemo-nos encontrar pela Verdade. Acolhamos o testemunho de cristão, de bispo e de Papa que, ao longo de toda a sua vida nos ofereceu Bento XVI”.
“E peçamos ao Senhor, que é a Verdade e o Amor, que acolha na sua Vida Eterna o “simples e humilde trabalhador na Vinha”, que sempre procurou “cooperar com a Verdade”, o Papa Bento XVI” concluiu.
A terminar a celebração, animada liturgicamente pelo Coro Solidéu, D. Nuno Brás leu o testamento espíritual de Bento XVI, datado de 29 de agosto de 2006.
Leia na íntegra a homilia de D. Nuno Brás:
MISSA PELO PAPA BENTO XVI
Catedral do Funchal
7 Janeiro 2023
“Manifestou a sua glória e os discípulos acreditaram nele”
- Como Igreja Diocesana, encomendamos à misericórdia, ao amor de Deus, o nosso querido Papa Bento XVI.
“Jesus, eu amo-te”: estas últimas palavras do Papa encontram a sua explicação naquelas outras com que ele próprio terminava o livro de diálogos com Peter Seewald, intitulado Conversas finais. Dizia Bento XVI:
Se não experimentamos o amor, não podemos falar dele. Eu experimentei-o primeiramente em casa, vindo do meu pai, da minha mãe e dos meus irmãos. […] Ser amados e restituir o amor aos outros, sempre o considerei fundamental para poder viver, para nos podermos aceitar a nós e aos outros. Finalmente, tornei-me cada vez mais consciente de que o próprio Deus não é apenas, digamos, um soberano omnipotente, um poderoso distante, mas é amor que me ama, e que, por consequência, deve ser a bússola da minha vida. E eu devo deixar-me conduzir por Ele, por esta força que se chama amor (ed. it., pág. 226).
Mas, com esta chave de leitura (que ele próprio nos ofereceu) não é apenas a vida de Joseph Ratzinger que podemos entender: como o próprio Papa ensinava magistralmente no início da sua primeira encíclica, neste encontro de amor consiste a fé, consiste todo ser e toda a vidacristã:
«Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele » (1 Jo 4, 16). Estas palavras da I Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da fé cristã: a imagem cristã de Deus e também a consequente imagem do homem e do seu caminho. Além disso, no mesmo versículo, João oferece-nos, por assim dizer, uma fórmula sintética da existência cristã: «Nós conhecemos e acreditamos no amor que Deus nos tem» (Deus caritas est, 1).
Se virmos bem, o que seduz em Jesus de Nazaré é precisamente o encontro surpreendente com o amor de Deus — encontro que transforma os corações daqueles a quem o Senhor se manifesta. Neste encontro se resume, de facto, toda a revelação cristã.
- Vemos isso claramente na narração das Bodas de Caná que acabámos de escutar. Deixemo-nos, também aqui, conduzir pela reflexão de Joseph Ratzinger, no seu livro Jesus de Nazaré (ed. it., I, pág. 291 e ss.).
O milagre das Bodas de Caná foi, diz-nos S. João, “o arquétipo” dos sinais, dos milagres de Jesus. E acrescenta o evangelista: “manifestou a sua glória e os discípulos acreditaram nele” (Jo 2,11). Como podemos dar-nos conta do amor de Deus no relato deste “sinal primeiro”, arquetípico, de Jesus, e o que ele significa? Em primeiro lugar, tomemos consciência de que a narração ultrapassa, em muito, o simples resolver de uma situação constrangedora para uma boda de casamento. O próprio evangelista a isso nos convida, pois nos fala das “núpcias” para as quais foi convidada a Mãe de Jesus, bem como o Senhor e os discípulos (a Igreja primeira). No relato, não refere quem eram os noivos: estes ficam para segundo plano porque, para S. João,o que importa é mostrar como em Jesus, na sua Páscoa, se realizam as núpcias definitivas de Deus com o seu povo: “Em Jesus, Deus e o homem tornam-se inesperadamente uma coisa única, têm lugar as núpcias, que passam através da cruz” (p. 294).
Neste mesmo sentido vai também a referência “ao terceiro dia”. Sabemos como o terceiro dia é o dia da manifestação de Deus. Assim foi no Sinai (cf. Ex 19,16-18) e assim foi na ressurreição: o terceiro dia é o dia da festa de Deus com a humanidade, a antecipação do Sábado final e definitivo. Por isso, Jesus se recusa a antecipá-lo (“ainda não chegou a minha hora”): esse é um momento que apenas o Pai o conhece, e Jesus é o Filho que nada quer antecipar, o Filho que sempre obedece à vontade do Pai. Mas agora, a pedido de sua Mãe (“a Mulher”, ou seja: a esposa, Israel, a Igreja), agora Jesus dará apenas um “sinal” da sua glória, a necessitar e a indicar uma plenitude futura.
A hora definitiva da manifestação de Deus, da sua glória, é a hora da Páscoa, a hora da cruz e da ressurreição que, a seu tempo, Jesus há-de viver.
Por agora, é dado como sinal a sobreabundância do vinho bom, do vinho melhor, do “vinho novo”, do amor de Deus que nos salva: a água dos ritos religiosos judaicos é transformada em vinho, sinal da alegria nupcial; a lei antiga cumpre-se plenamente em Jesus; sem Jesus, os ritos antigos (e os ritos humanos) são incapazes de oferecer a salvação: “O dom de Deus vai agora ao encontro da dificuldade própria dos homens. Dando-se a si mesmo, este dom cria a festa da alegria, uma festa que apenas a presença de Deus e do seu dom pode instituir” (p. 295).
É a sobreabundância do amor, a manifestação da glória divina, que o mesmo é dizer: um sinal da manifestação da palavra, do juízo definitivo de Deus sobre a humanidade e todo o universo.
- O final da Iª leitura — que é também o final da 1ª Carta de S. João, e que resume todo o escrito do “Discípulo Amado” — faz a identificação do Deus de amor com a pessoa de Jesus e com a Verdade. S. João mostra como, em Jesus, Deus nos deu a verdadeira possibilidade de amar: “sabemos que veio o Filho de Deus e nos deu inteligência para conhecermos o Verdadeiro. Nós estamos no Verdadeiro, por seu Filho, Jesus Cristo, que é o Deus verdadeiro e a vida eterna. Meus filhos, guardai-vos dos falsos deuses” (1Jo 5,20-21).
“Cooperador da Verdade” foi o lema episcopal de Bento XVI. Também a este propósito, no já referido diálogo com Peter Seewald, esclarecia o Papa emérito: “Não podemos dizer: ‘Eu possuo a verdade’, mas que a verdade nos possui, nos tocou. Uma vez que a verdade é pessoa, com ela podemos colaborar. Por ela podemos empenharmos, procurando fazê-la prevalecer” (p. 225).
Deixemo-nos, também nós, surpreender pela abundância do amor divino que vem ao nosso encontro. Deixemo-nos encontrar pela Verdade. Acolhamos o testemunho de cristão, de bispo e de Papa que, ao longo de toda a sua vida nos ofereceu Bento XVI.
E peçamos ao Senhor, que é a Verdade e o Amor, que acolha na sua Vida Eterna o “simples e humilde trabalhador na Vinha”, que sempre procurou “cooperar com a Verdade”, o Papa Bento XVI.