Leitura significa o ato de ler. É logo a primeira aprendizagem que se faz, quando se entra aos seis anos na escola. Portanto, leitura é o ato de ler. Mas com o desenvolvimento da Linguística, a ciência da linguagem que muito se desenvolveu na segunda metade do século passado, leitura passou a ter um segundo sentido: interpretação. E passou para a fala comum em frases do tipo: a leitura que eu faço…isto é, a interpretação que eu faço disto ou daquilo, deste texto ou deste acontecimento é esta. Ou então: esta é a minha leitura. E acontece que se entra no domínio da subjetividade. Há uma anedota que eu acho uma maravilha e que ilustra bem a possibilidade de se fazerem diferentes leituras. Alguém foi visitar um amigo à prisão. À entrada, diz-lhe o guarda: é proibido entrar com embrulhos. Tem de os deixar aqui. —-Mas eu não trago nenhum embrulho.—Então vá buscá-los para os deixar aqui à entrada.
Eu fui vítima de uma situação parecida. Nestes tempos de pandemia, proliferaram leis que não se sabia bem como interpretar. Há meses, no final do ano passado, quis vir à minha terra. Sou por princípio respeitadora das leis. Li a lei que restringia as deslocações. Havia duas leituras possíveis. Permitiam-se deslocações dentro de curtas distâncias, mas não estavam proibidas deslocações de longas distâncias. Resolvi consultar o departamento responsável, concordava comigo: as duas leituras eram possíveis, eu que fizesse o que entendesse, que fizesse boa viagem e conduzisse com cuidado. Assim fiz. Nova situação, passada com as restrições das viagens aéreas depois do Natal. Acompanhei ao aeroporto a minha filha que regressava a Barcelona, onde reside, e quando ela ia registar a bagagem, volta para trás e pede-me que fique com a mala, porque tem de ir à polícia justificar a viagem e trazer uma autorização. Quando regressa, diz- me: felizmente tinha comigo o meu cartão de residente, se não, não poderia embarcar. Registei o incidente. Pouco depois da Páscoa, comprei bilhete para ir a Genève festejar o aniversário de uma sobrinha-neta. Lembrei-me da necessária justificação. Liguei para a companhia de aviação, que me confirmou a necessidade de autorização escrita e que seria passada pela polícia do aeroporto. Liguei para lá. Que não, não eram eles, era a companhia de aviação. Voltei a ligar. De modo algum! Não temos competência para tal. Ligue para a polícia da sua área de residência e eles que a informem. Liguei. Expus o problema e foi confirmado que era necessária uma declaração a justificar a necessidade da viagem. E quem passa? É uma boa pergunta. Telefone para o SEF (Serviço de estrangeiros e fronteiras) Eu dou-lhe os números de telefone. Deu-me seis. Fui ligando. Nunca ninguém atendeu. Tinha começado este andar de Anás para Caifás logo a seguir ao almoço e já a tarde ia adiantada e as dores de cabeça também. Resolvi parar, tomar um café em frente à janela a ver o Tejo. Lembrei-me então da Saúde 24. Foi-me informado que eu precisava de facto de uma justificação. Argumentei que, indo eu para uma reunião familiar, só se eu mesma fizesse uma declaração sob compromisso de honra. Achou a ideia excelente. Então eu quis saber onde estaria essa famosa lei, porque eu própria a queria ler e fazer a minha leitura. Encaminhou-me para o site da Comunidades Portuguesas. Que clicasse em restrições de viagens e lá estaria o texto da lei. Assim fiz. Li o texto, fiz a minha leitura e não havia nada que estipulasse que tivesse de apresentar no registo de bagagens um justificativo passado pela polícia. Imprimi a lei e levei-a comigo. Se tivesse de ir à polícia, mostrava a lei e pediria que me dissessem onde estava a exigência de comprovativo. A minha filha que acompanhou esta Via Sacra, preocupada, no dia da viagem, quando calculou que eu já estaria no aeroporto telefonou-me a fazer a pergunta fatal: Já foste à polícia? Ninguém me falou nisso e também não falei, disse-lhe eu. Então também não fales. Apresentei o bilhete mais a declaração do laboratório de que o teste à Covid deu negativo e que custou o dobro do bilhete e foi tudo. É ou não a mesma história dos embrulhos deixados à entrada da prisão?
Cecília Rezende – Escritora